quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Adeus Afeganistão. Olá escudo anti-missil


Cimeira de Lisboa deverá ser decisiva para a definição do plano de retirada do Afeganistão e implementação do escudo anti-missil na Europa.

A partir de sexta-feira, Lisboa recebe uma cimeira de dois dias da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN ou NATO, na versão inglesa). Os 28 Estados-membros estarão maioritariamente representados pelos seus principais dirigentes políticos. Entre eles, Barack Obama, o presidente dos Estados Unidos, pela primeira vez em Portugal.

A NATO é hoje o único bloco do mundo de cariz unicamente militar e o seu papel no actual contexto global é um dos eternos pontos em discussão. Da capital portuguesa devem sair linhas claras que apontem para uma redefinição estratégica que poderá levar ao reforço da matriz de manutenção da paz e segurança.

A interminável guerra no Afeganistão, naquele que foi o primeiro conflito da Aliança Atlântica fora da Europa, marcará, necessariamente, os trabalhos.

Dia 15, David Cameron foi categórico ao garantir que os militares britânicos deverão sair do Afeganistão até 2015. “Eu disse que as nossas forças de combate estariam fora do Afeganistão até 2015”, recordou o Primeiro-Ministro do Reino Unido, num discurso sobre política externa.

O chefe do governo de ‘sua Majestade’ foi mais longe e anteviu que “a Cimeira da NATO deve marcar o ponto de partida para a passagem de responsabilidades pela segurança para as forças afegãs".

Um dia mais tarde, Washington deu sinais idênticos. A intenção de DC será deixar o país asiático pronto para assumir a responsabilidade pela sua segurança em 2014. A confirmar-se, o plano será apresentado pelo presidente Obama no Parque das Nações, em Lisboa.


Escudo anti-missil


Outro assunto polémico estará em cima da mesa: a construção de um sistema continental de mísseis, projecto associado ao controverso escudo anti-missil há muito ambicionado pelos Estados Unidos.

Está-se “muito mais perto de um consenso do que alguma vez estivemos”, afirmou, a propósito, e já esta semana, o ministro dos Negócios Estrangeiros português, Luís Amado.

O sistema de defesa transcontinental não é uma questão pacífica, em particular no oriente europeu, mas a crescente aproximação da Casa Branca ao Kremlin deixa adivinhar um entendimento a curto ou médio prazo, até porque os receios do mundo ocidental já não têm origem na Rússia.

O secretário-geral da NATO, Anders Fogh Rasmussen, considerou terça-feira que Medvedev sabe que a organização já não constitui qualquer ameaça para os interesses de Moscovo. “Estou convencido de que a Rússia também não é uma ameaça para nós”, acrescentou.

“Estou de acordo que devemos ser parceiros. Penso que a actual administração russa compreende que o futuro está na cooperação estreita com a União Europeia e com a NATO", declarou ao diário Kommersant.

A mira dos aliados está agora apontada a países como o Irão e a Coreia do Norte. A existência de arsenais nucleares nestes dois membros do “Eixo do Mal”, expressão do antigo presidente George W. Bush, é uma matéria sensível, à qual Estados Unidos e Europa não ficam indiferentes.

O processo está a avançar e em Maio, o Pentágono garantiu a primeira implantação de longo prazo de mísseis anti-balísticos na Europa, mais concretamente em Morag, na Polónia, a 35 quilómetros da fronteira russa. Um sinal de que a NATO precisa mais dos Estados Unidos, do que o contrário.

No velho continente, o Reino Unido e a França, que com Nicolas Sarkozy se reaproximou da Aliança, depois de quatro décadas de costas voltadas, assumiram a dianteira, secundados pela Alemanha de Merkel.

Paris e Londres juntaram-se e assinaram um pacto que permitirá a criação de uma força militar conjunta e a partilha de instalações nucleares de teste.

Num artigo publicado na imprensa do seu país, o secretário da Defesa britânico, Liam Fox, comentou: “Há muitas razões pelas quais a cooperação [com a França] faz sentido. Somos apenas duas potências nucleares da Europa”.

“Desde que o presidente Sarkozy chegou ao poder temos visto um renovado vigor na tentativa de juntar a Europa e a América numa parceria e cooperação”, regozijou-se Fox na antecâmara de um encontro político ao mais alto nível e que coloca os olhos do mundo em Portugal.

Expresso das Ilhas (Cabo Verde), 17 de Novembro de 2010

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Dilma Rousseff: A vitória de uma tecnocrata


Dilma venceu com 56,05 por cento dos votos, mas agora terá de justificar o voto de confiança e provar que percebe de política e não apenas de números.

Não será tanto pelo beijo que lhe mandou Hugo Chavez, mas o mundo está de olhos postos em Dilma Rousseff. Depois da vitória na segunda volta das eleições presidenciais brasileiras, onde derrotou José Serra, a sucessora de Lula da Silva tem pela frente uma empreitada de maior dimensão: manter o Brasil na senda do desenvolvimento e prosseguir a afirmação do país enquanto nova potencial mundial.

As reacções imediatas foram de encorajamento. De Obama, a Ahmadinejad – e por aqui se vê como o país sul-americano é hoje consensual – os principais líderes políticos não quiseram deixar de saudar a terceira vitória presidencial consecutiva do Partido dos Trabalhadores (PT).

Sem grande surpresa, Dilma apressou-se, logo na segunda-feira, a garantir a continuidade das políticas de Lula e descartou a aplicação de medidas radicais para controlar o valor da moeda.

“Vou olhar com muito cuidado para as taxas de câmbio porque não creio que manipular resolva alguma coisa. Teremos um câmbio flutuante e reservas que permitem defendermo-nos das manipulações internacionais”, garantiu numa entrevista televisiva à rede Globo.

Antes, a presidente eleita já tinha advertido que o seu Governo vai actuar com “rigor” nas questões da taxa de câmbio de moeda e considerou não ser possível aplicar políticas do passado, como a desvalorização competitiva.

A futura inquilina do Palácio do Planalto lembrou que não poderá contar inicialmente com a robustez das principais economias e defendeu o fim do proteccionismo dos países ricos. “É necessário estabelecer no plano multilateral regras muito mais claras e mais cuidadosas”.

“Actuaremos firmemente nos fóruns internacionais com esse objectivo”, garantiu.

Por outro lado, após a oficialização da vitória, Rousseff reforçou que uma das metas do seu Governo será a erradicação da miséria e assumiu como um dos seus primeiros compromissos “honrar as mulheres brasileiras” e “valorizar a democracia” em todas as suas dimensões.

O voto feminino terá sido decisivo para garantir a eleição daquela que será a décima segunda mulher a chegar ao mais alto cargo da magistratura de um estado americano.

No discurso da vitória, Dilma reforçou também que não descansará “enquanto houver fome” no Brasil e pediu a ajuda de todos para que o país possa atingir os mais altos patamares do desenvolvimento: “esta ambiciosa meta é um apelo à nação. Peço, humildemente, o apoio de todos para superar este abismo que ainda nos separa de sermos uma nação desenvolvida”, afirmou aos seus apoiantes, antes de agradecer a Luís Inácio Lula da Silva o apoio manifesto.

“Ter a honra de seu apoio, o privilégio de sua convivência, são coisas que se guardam para a vida toda. Conviver durante todos esses anos com ele [Lula] deu-me a exacta dimensão do governante justo e do líder apaixonado pelo seu país”, assegurou.

A colagem a Lula ter-lhe-á garantido parte do bom resultado que conseguiu. Mas a aproximação ao ainda presidente implica que a imprensa internacional coloque a eleita na sombra do cessante.

O New York Times destacou que o actual perfil positivo do Brasil no cenário internacional “pode cair com Dilma, porque ela não possui o carisma de Lula e mostrou pouca inclinação para entrar nas arenas diplomáticas globais, em que Lula construiu um nome para si e para a nação".

Em França, o Le Monde avançou com os “benefícios do apoio de Lula da Silva”, escrevendo que é a “herdeira política era dada como vencedora devido ao crescimento espectacular” do Brasil.

Dilma Rousseff é mais técnica que política. A eleição presidencial foi a sua estreia numa disputa eleitoral e agora cabe-lhe mostrar serviço. Alguns analistas dizem que cumprirá apenas um mandato, abrindo caminho para o regresso do seu mentor, dentro de quatro anos.


Preparativos para o novo governo

À margem das especulações, a presidente eleita já começou a montar a sua equipa de transição. O primeiro passo foi chamar os aliados mais próximos para uma reunião privada, na última segunda-feira, e começar a discutir as primeiras medidas a serem tomadas.

Na reunião terão estado os seus coordenadores de campanha, o presidente do PT e o deputado José Eduardo Cardoso.

Ao que tudo indica, Paulo Bernardo, actual ministro de Lula, deverá transitar para o futuro executivo, assumindo o lugar de chefe da Casa Civil.



Expresso das Ilhas de 3 de Novembro de 2010

Gente Normal (crónica)


Barlavento, de 11 de Novembro de 2010

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Entrevista a João Branco: "O Mindelact reflecte aquilo que o Mindelo era e que luta para ainda ser"


Principal evento teatral do país, o Mindelact cumpre, em 2010, a sua décima sexta edição. Depois de ter sido condecorado pelo Presidente da República, João Branco, antecipa o que aí vem e comenta a falta de uma estratégia pública que torne a criação artística uma prioridade nacional.

Em 1995, o que é que esteve na base da fundação do Festival Mindelact?

Várias coisas. Uma delas foi o facto de nos termos apercebido de que, depois do movimento que a cidade tinha em Agosto por causa do festival Baía das Gatas, ela morria um pouco em Setembro, altura em que praticamente não acontecia nada. Sendo a nossa área o teatro, achámos que seria interessante avançar, de forma consequente, para um evento teatral.

Quem é o “nós” a que te referes?

O conjunto de pessoas que resolveram avançar com isto. Actores, actrizes, gente do teatro.A primeira edição teve a participação de três grupos, dois de São Vicente e um de Santo Antão e ainda foi realizada de forma um pouco improvisada, digamos assim. Só depois é que foi fundada a Associação Mindelact. Em 96, então, já foi um festival bastante maior, com 24 dias de duração e grupos de praticamente todas as ilhas de Cabo Verde.

Quando é que acontece a internacionalização?

A internacionalização dá-se em 97, graças a uma co-produção entre a Mindelact e Associação Cena Lusófona, de Portugal, que realizou uma Estação em Cabo Verde, no âmbito do festival. Por isso é que costumo dizer que, para nós, o festival mais importante foi o de 98, porque foi o primeiro com carácter internacional, produzido sem a ajuda directa de nenhuma instituição. Nesse ano o desafio era provarmos a nós próprios que seríamos capazes de continuar a ter um festival internacional.

O que é que a edição de 2010 apresenta de novo?

Procuramos sempre inovar, através de propostas teatrais que, do ponto de vista estético e da temática, tragam algo de novo às pessoas. O investimento que é feito, tanto por nós, como pelo Estado de Cabo Verde, pelas empresas que nos apoiam, pela Cooperação Internacional dos diversos países ou pelos próprios grupos que participam, é muito grande. Por isso, convém que cada espectáculo, por si, valorize esse investimento e essa valorização pode ser feita pela qualidade, mas também pela novidade em relação ao tipo de texto, à estética da peça ou ao lugar em que é apresentado.

Este ano, essa componente da inovação é muito marcante. Seja pelo espectáculo de abertura do Leo Bassi – que é um provocador nato – ou pela apresentação que vai decorrer num vulcão extinto. Paralelamente, vamos ter teatro um pouco por todo o lado. No fundo, todas as propostas que procuramos trazer, têm algo de novo, para além da preocupação de qualidade.

O Mindelact, com as características que tem, só faz sentido em São Vicente?

O Mindelact é o que é por ser nascido aqui e o próprio nome do festival tem o nome da cidade. Não é que não possa haver outros festivais noutras cidades, mas inevitavelmente iriam ter um espírito diferente.

Cada cidade tem a sua alma própria e o Mindelact reflecte aquilo que o Mindelo é. Melhor, acho que o Mindelact reflecte aquilo que o Mindelo era no passado e que luta para ainda ser hoje: uma cidade cultural, desperta, que se interessa, que provoca, que reivindica.

O Mindelo deixou de ser assim?

São os novos tempos. As pessoas são cada vez mais individualistas, menos colectivistas. O problema de uma cidade, já não é o teu problema. Só será o teu problema se te entrar pela casa adentro. É como a história da dengue. As pessoas só se preocupam com a dengue quando algum familiar, amigo ou conhecido está em perigo de vida.

O Mindelo de hoje é uma cidade que não se preocupa, que não tem o espírito de criatividade e de reivindicação que tinha há algum tempo.

Como tinha em 95?

Creio que sim. Aliás, se não tivesse, o Mindelact não tinha nascido.

Este ano vão experimentar uma extensão na Praia.

Essa extensão surge um pouco como tudo no Mindelact. Toda a estruturação da programação, com o Palco Principal, o Festival Off, o Teatrolândia e agora o Teatro Periferia, foi surgindo motivada pela necessidade de inovação e de diversificação dos públicos. Para nós, este é um festival que deve ter um cunho social muito importante.

A cidade da Praia tem tido vários eventos inovadores, seja no domínio das artes plásticas ou da música. Achámos que seria a altura de fazer uma extensão do Mindelact e fazemo-lo sem qualquer tipo de complexos. Até para lutar contra alguns tipos de preconceitos. Isto não é um Praiact, É uma extensão do Mindelact na cidade da Praia. São duas coisas muito diferentes. E que só foi possível porque houve duas instituições locais, o Instituto Camões – Centro Cultural Português e a Câmara Municipal da Praia, que aceitaram ser parceiros nesta aventura.

Tendo em conta esses preconceitos, a extensão não pode ser entendida como uma provocação?

Eu já ouvi coisas do género “então já não basta estar tudo lá, ainda vão fazer o festival na Praia?”. É apenas uma extensão. Isso acontece em todo o mundo. Em Portugal, o Festival de Teatro de Almada, que é o maior festival do país, tem espectáculos em Lisboa, no Porto e noutros locais.

O mais importante desta extensão é dar oportunidade às pessoas que vivem na Praia, e muitas delas até são de São Vicente, de usufruírem dos espectáculos que nós conseguimos trazer ao Mindelo.

O Mindelact serviu para formar um público?

Não só o festival, como também os cursos de teatro do Centro Cultural Português. Quando tu dás um curso de iniciação teatral estás a passar um determinado tipo de informação e estás também a formar um espectador especializado. Esse espectador, quando vai ao teatro, leva um primo, um amigo ou a namorada e vai passar a informação para alguém que, por sua vez, começa também a ver o teatro de outra forma.

A formação e o festival têm sido fundamentais e hoje o público do Mindelo é generoso e, sobretudo, muito conhecedor.

Para além de que, quem vai ao teatro no Mindelo não aceita que o espectáculo co mece com mais de cinco minutos de atraso. Só isso, é um avanço considerável.

Cultura em Cabo Verde

Faltam palcos em Cabo Verde?

O Mindelact é um grande palco e tem sido um factor motivacional. A paixão pela arte não é tudo. Tens de ter condições, tens de ter salas de ensaio, tem de haver lugar para apresentar os espectáculos.

O facto de o Mindelact existir, torna a participação no festival como uma meta. Muitos grupos de teatro ainda existem pelo facto de terem essa perspectiva de participarem no festival.

O que falta em Cabo Verde são outros factores que deveriam existir e não existem. É uma questão de tu teres espaços públicos e esses locais programarem espectáculos com grupos de teatro nacionais.

O que falta, é tu teres alguém, responsável por um espaço público, seja um Auditório Nacional ou um centro cultural, que chame os grupos de teatro e lhes diga que quer apoiar o seu trabalho.

De que forma?

Se numa cidade existem seis grupos de teatro, se um ano tem doze meses, então cada grupo tem dois meses para apresentar uma peça. Em contrapartida, a sala ganha a possibilidade de ter uma programação própria de teatro. São coisas relativamente simples de fazer e que não são feitas.

E as infra-estruturas que existem são suficientes?

A questão que se põe é o que se faz com o pouco que se tem. Eu não acho que a solução seja gastar milhares de contos a fazer um espaço todo novo e multifuncional. Com certeza, seria bom, mas se calhar seria melhor apostarmos naquilo que temos.

Eu continuo a achar estranho que o Auditório Nacional, na capital de Cabo Verde, tenha a sua gestão privatizada. Um Auditório Nacional tem de ter uma direcção artística, um corpo técnico próprio e uma programação própria, que é uma programação que o Estado coloca à disposição das pessoas, como acontece com os teatros nacionais, em qualquer país do mundo. Na prática, temos ali um palco que existe mas não está disponível.

No Mindelo temos o Éden Park.

O Éden Park, que está praticamente sem salvação. Esteve durante os últimos dois anos a apodrecer à vista de todos, o que quer dizer que neste momento já está podre. Se calhar a solução não era fazer outro teatro. Era, isso sim, arranjar maneira de comprar aquele edifício, fazendo jus à sua história e importância que ele tem para a cidade, e transformar aquilo num centro cultural, palácio da cultura ou teatro municipal.

A cultura é esquecida entre quem decide?

Uma grande entrevista de um grande estadista cabo-verdiano abrange todos os temas, menos um. Há ali um nicho que é sempre esquecido. A cultura cabo-verdiana é um lugar pequenino que nunca é considerado, mas que de facto é o que dá força a todo o resto.

O que eu penso é que há muita coisa por fazer. Fala-se em mudança de paradigma e de economia de cultura e há dez anos que estamos às voltas com os mesmos temas.

Acho que existe uma falta de conhecimento muito grande e existe uma máquina no Estado que emperra um pouco as coisas.

Há dois anos foi feito um fórum, muito abrangente, com artistas de todas as áreas. Saí de lá bastante entusiasmado com os resultados. Uma das coisas que foi prometida é que no espaço de seis meses seria apresentado um plano estratégico para a cultura. Já passaram dois anos e esse plano não apareceu. É preciso agir mais e mais depressa, sobre novas bases.

Que importância atribuis à condecoração que recebeste há dias?

Acho que foi muito importante essa distinção, por várias razões. Para mim foi importante que o teatro e a dança tivessem sido contemplados neste tipo de condecorações que muitas vezes, por razões óbvias, se lembram apenas da música

Depois, é um factor de orgulho e motivação, de satisfação pessoal e colectiva, que eu devo partilhar com quem trabalhou comigo ao longo dos últimos anos, até porque no teatro ninguém faz nada sozinho.

O que é que faz uma boa política cultural?

Essencialmente é entender alguma coisa de cultura. A primeira coisa a entender é que os artistas cabo-verdianos não são subsidio-dependentes, como algumas pessoas gostam de fazer passar. Ser um músico, encenador ou artista plástico é tão importante como ser advogado. Ter um centro cultural é tão importante como ter uma escola ou um campo de futebol.

Mudar mentalidades é colocar a cultura num patamar que corresponda à importância real que ela tem para o país. É preciso que as pessoas levem estas coisas um pouco mais a sério. Enquanto continuarmos a considerar que o artista é um coitadinho e que a cultura é uma coisa anexa, não vamos a lado nenhum. A cultura é uma coisa estrutural e estruturante.

Para um homem do palco, como tu, o trabalho artístico em Cabo Verde é diferente daquele que se experimenta noutros países?

Completamente diferente. Há uma energia, uma emanação, um lado humano e um compromisso que não encontras noutro lugar. A mim o que me assusta é que isso se está a perder.



Expresso das Ilhas (Cabo Verde) n.º 457 / foto: Anselmo Fortes

domingo, 11 de julho de 2010

Viagem do torno à prensa


Há uma década que, no Mindelo, a família Alves faz da formação profissional em metalomecânica o seu modo de vida. A escola que lhes paga as contas é a tábua de salvação para muitos jovens que procuram uma alternativa para o mais que certo desemprego.

Antes de regressar a Cabo Verde, Augusto Alves, ou Ti Nené, como é conhecido, andou pelo mundo, a bordo de um dos gigantes que cruzam os oceanos. Um dia, algures nos finais da década de 70, apercebeu-se de um futuro não muito risonho em perspectiva e decidiu trocar o mar por terra firme. No arquipélago, casou-se e instalou-se por conta própria. O marinheiro tornou-se técnico metalomecânico e começou, então, a escrever a história que o levou até à Escola de Formação Profissional Padre Filipe Pereira (EFPPFP), de onde, em finais de Junho, um grupo de 15 jovens saiu com um diploma na mão.

Por entre as máquinas, a maior parte delas nascidas das sua mãos, Mestre Nené circula com a ligeireza de quem conhece o chão que pisa. O pavilhão que é hoje a escola profissional que, em conjunto com a mulher, dirige desde o final da década de 90, é, em grande medida, a sua casa. Por lá passa a maior parte dos dias. A ensinar ou a imaginar – e a desenhar – os futuros engenhos que, depois de vendidos, asseguram o financiamento do projecto.

Constituída como uma sociedade por quotas, a EFPPFP subsiste das receitas que consegue gerar, seja pela venda de equipamentos, ou pela prestação de serviços a terceiros. Anilda Alves, fundadora e directora-geral da instituição, acredita que, pelas suas características, muitos ainda olham com alguma desconfiança para o estabelecimento de ensino privado.

“O nosso funcionamento é subsidiado pela prestação de serviços a terceiros. Trabalhamos na área naval, na construção civil e em muitas outras áreas. Há sempre dificuldades em conseguir apoios. O que é certo é que estamos a fazer um trabalho sério”.

Ainda assim, algumas das acções de formação têm o apoio do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP). Começou ontem o quinto curso co-financiado. Anilda não sabe quantos técnicos a escola formou. Depois de mais de uma década de actividade, serão algumas dezenas, por certo. Jovens a quem foi dado um rumo de vida e ensinada uma profissão.

“O mais aliciante é a garantia de que, no futuro, que faz o curso, não vai passar mal. Quem sabe fazer alguma coisa, safa-se na vida. E esta é uma formação polivalente, que dá capacidades em várias áreas”, explica o Mestre Nené. “Porque é que havemos de ser vassouras, quando podemos ser oficiais?”, questiona.

Tudo começou em 1998. Depois de uma experiencia empresarial mais tradicional, também ela com uma “preocupação pedagógica”, Anilda e Nené, marido e mulher, optaram por um novo investimento que juntasse o útil ao agradável.

A escola abriu portas, embora só tenha sido oficialmente reconhecida como tal em 2001. Os primeiros anos de actividade foram singulares. Na fundação, um projecto levou crianças de rua a aprender um ofício. Depois, um programa pioneiro de artesanato em madeira, que viria a ser interrompido a meio.

Actualmente, a formação centra-se na metalomecânica. A preocupação é dotar os formandos das “competências necessárias para serem capazes e fazer mais do que uma coisa”.

“Sabemos que o mercado de trabalho em Cabo Verde é limitado”, justifica a directora. “A formação não pode ser demasiado especializada, senão vai haver um afogamento”, esclarece.

“O jovem é treinado versatilmente. De tal forma que, quando não houver trabalho numa área, ele tem capacidade, de passar para outra”.

Cada curso dura 9 meses. Um ano lectivo de formação intensa, com uma forte componente prática, sem descurar as bases teóricas. Matemática, geometria e desenho técnico são algumas das disciplinas que constam do plano curricular.

“Os alunos têm 9 meses de grande aprendizagem. O aluno, nos primeiros tempos, começa a ter noção de todo o funcionamento da escola, das máquinas e de como é que se trabalha. Mas não perdemos muito tempo com teoria. Estes jovens já saem da escola com a cabeça preguiçosa. Apostamos, fundamentalmente, na componente prática”.

Projecto de vida

A Padre Filipe é também uma escola para a vida. A maior parte dos alunos que frequentam os cursos profissionais têm um historial de insucesso escolar e a formação profissional é a última alternativa, a derradeira possibilidade de adquirir habilitações que possibilitem encarar o futuro com algum confiança.

Os responsáveis defendem que, mais importante do que a escolaridade adquirida, o sucesso reside na “capacidade latente na própria pessoa”.

Dia após dia, Ti Nené regista a evolução dos seus alunos. “Quando chegam, a cabeça está a zero. Depois de oito ou nove meses connosco, já não se sentem perdidos. Sentem que tem qualquer coisa para suportar o peso do mundo. Estão orientados”.

“A Terra está um bocado perigosa para obter trabalho. Mas haverá sempre alguma coisa para construir ou reparar”, sustenta, com uma certeza: “tenho confiança de que estes que passaram por aqui não vão ser bandidos”.

Foi à procura de certezas que Élvis Guilherme bateu à porta da EPPJP. O pai, amigo de longa data do ‘mestre do ferro’, falara-lhe do que por lá se faz. Curioso, com o décimo primeiro ano incompleto, e aos 22 anos, foi saber mais. Gostou do que lhe disseram e inscreveu-se. Agora, com o diploma na mão e enquanto não consegue emprego, ocupa-se a exercitar o que lhe ensinaram.

“Sempre quis fazer alguma coisa, sempre quis aprender um ofício. Surgiu esta oportunidade e resolvi agarra-la”.

Élvis gostou da experiência - “o curso foi espectacular, muito bom e aprendi muitas coisas” - e reconhece a utilidade dos meses que passou a soldar e a furar: “acho que já começou a ser útil para mim. Mudei a minha maneira de ver as coisas e encaro a vida com mais responsabilidade e confiança. Daqui para a frente quero arranjar um trabalho”.

Da mesma opinião partilha David Santos. Já formado, continua a ocupar o tempo livre por entre as máquinas nas quais aprendeu a ser metalomecânico. “Já ouvira falar do Mestre Nené há muito tempo e sempre quis vir para aqui”. Terminou o décimo segundo ano e matriculou-se. “Agora quero arranjar um emprego”.

Para Ti Nené, o momento em que um aluno acaba a sua formação é o mais reconfortante. “É para isso que cá estamos”. “O dever cumprido é o mais importante. Sentimo-nos reconfortados pelo que fazemos”.

Anilda e Ti Nené poderiam ter optado por outro modelo de negócio. Antes da escola, dirigiam uma empresa que, confrontada com dificuldades de mercado, acabou por fechar. Tendo com único diploma o de marinheiro, passado no Mindelo, ainda no tempo colonial, Mestre Nené aprendeu metalomecânica com a vida. “Nunca tive dificuldade em mudar de profissão e adaptar-me a novas circunstâncias”. É com “muito gosto” que mantém a escola de portas abertas e a escolha pela via da formação profissional acabou por ser natural.

“Percebemos que havia uma grande carência de mão-de-obra qualificada”, avalia Anilda Alves. “O espírito é muito diferente do que numa empresa normal. É melhor formar pessoal e elevar essa rapaziada a um nível bom. Temos a certeza que qualquer um destes homens, no mercado internacional, se safará sem grandes dificuldades. É uma grande alegria vê-los sair daqui com bases que fazem sucesso com qualquer empresário”, acrescenta o marido.

O futuro

Nos anos 60, Filipe Pereira, padre, foi o primeiro director do colégio dos Salesianos, em São Vicente. A instituição, que continua hoje uma referencia na ilha, foi pioneira na formação profissional. Augusto Alves quis homenagear a figura histórica do Mindelo e optou pelo nome do sacerdote para a escola profissional que fundou.

A EFPPFP funciona hoje num armazém na estrada para Calhau. Embora amplo, o espaço é insuficiente. Nele já não cabe a ambição do casal, que sonha com melhores condições, para alargar a oferta formativa. Em estudo, a criação de um curso em mecânica auto, a par de um outro, em electricidade. Tudo dependerá, contudo, da concretização do projecto de arquitectura, já aprovado, mas que, por falta de financiamento, continua dentro da gaveta.

Quando estiver concluída a ampliação, a Escola Filipe Pereira terá mais quatro salas, com fins diversos, da biblioteca à informática. “A minha ambição”, explica Anilda, “é alargar a escola, no sentido de termos mais alunos, e criarmos mais áreas de formação, com um staff maior”. A directora não tem dúvidas: “é um sonho para se concretizar aos poucos”.


publicado no Expresso das Ilhas (Cabo Verde) de 7 de Maio de 2010

terça-feira, 6 de julho de 2010

Sete horas com o santo às costas


Todos os anos, a tradição cumpre-se em Santo Antão. Durante as festas do padroeiro, milhares de pessoas fazem a pé os mais de vinte quilómetros que ligam Ribeira das Patas ao Porto Novo.

“Ide em paz e que o senhor vos acompanhe”. Com a bênção final, ao encerrar a breve oração colectiva, Pier Aldo, pároco de Porto Novo, marca o início da peregrinação para as centenas de fieis que, no início da manhã de 23 de Junho, se aglomeram nas imediações da igreja de Ribeira das Patas. Todos os anos é assim. Na véspera do São João, a imagem do padroeiro sai do altar onde repousa e é transportada, ao longo de quase 25 quilómetros, serra abaixo, até à cidade de Porto Novo.

O dia começou cedo para Antonieta Carvalho. Há uma década, “sem nunca falhar”, que cumpre a tradição de, na véspera do dia feriado, sair da cama mais cedo do que o costume. “Pelas cinco horas já estava de pé”, revela. Depois de um pequeno-almoço reforçado, parte de casa dos familiares que a recebem – é de São Vicente – e percorre, desta vez de carro, a estrada que a conduzirá até à povoação à qual todos os caminhos parecem levar.

“A manhã vai ser longa e por isso é importante estarmos bem alimentados”, considera. “O que me move é uma grande fé a São João Baptista. É muito bonito fazer este caminho”.

Pontualmente, às oito da manhã, a imagem está no adro. Serão precisas sete horas até que o cortejo entre na cidade. Durante esse tempo haverá sempre alguém a tocar tambor ou a dançar ao compasso do som da percussão.

A temperatura aumentará e o calor recordará porque é que esta é uma terra árida. Às 8:30, uma primeira pausa. Alguns minutos bastam para recuperar energias. Com o sol a subir no céu, abrem-se as primeiras garrafas de cerveja. O grogue há muito que vai enchendo os copos de plástico.

Carrinhas, com ‘lanchonetes’ mais ou menos improvisadas, socorrem a sede e a fome dos peregrinos. Tanta gente junta será sempre uma boa oportunidade de negócio.

O ‘sumo de cevada’, em garrafas de 25 centilitros, é o que tem maior saída, mas também há refrigerantes, água, pastéis, torresmos e moreia. É só escolher.

A massa humana aumenta com os quilómetros percorridos. A cada instante, uma nova cara junta-se à caminhada. Muitos levam ao pescoço peculiares rosários, com contas feitas de mancarra, massa de pão ou pipocas. Pelas 9 horas, já é difícil perceber onde começa e acaba o grupo.

Matar saudades

Acima de tudo, a peregrinação de São João Baptista é um grande momento de festa. De toda a ilha, mas também do resto do arquipélago e da emigração, acorre gente movida não só pela fé, mas pela oportunidade de rever velhos amigos e familiares.

Isaurina Silva vive nos Estados Unidos. A viagem de avião entre Boston e a Praia demora quase tanto quanto o trajecto que se propõe a fazer. Nasceu em Santo Antão, mas partiu cedo, procurando fugir à pobreza e à aridez da terra. Regressa uma vez a cada doze meses, mas fá-lo em estreia durante as festas do padroeiro. Às dez e meia, depois de Lagedos e antes de Ponte Sul, segue caminho com uma garrafa de água na mão, acompanhada pela filha.

“Nunca tinha vindo. Felizmente, este ano, consegui tirar férias nesta altura. Estou cansada mas a gostar muito. Devagar se chega lá”.

Em menos de três horas já reviu amigos de infância e familiares afastados a quem tinha perdido o rasto. “Já vi gente de quem não sabia nada há muitos anos. Uns estão na Holanda, outros em Portugal e outros ficaram mesmo aqui”.

Em cada povoação, um altar, para fazer descansar as costas dos que carregam São João Baptista, e uma mesa, para aliviar os estômagos madrugadores.

Quem conta um conto

Diz o povo que quem conta um conto, acrescenta um ponto. A julgar pelas variações existentes em torno dos motivos que levaram à criação da peregrinação, talvez o ditado tenha razão de existir.

Todas convergem, contudo, na certeza de que terá começado quando uma imagem do agora padroeiro foi encontrada à beira-mar. Uma mulher transportou-a para uma gruta, transformando-a em local fé. João Baptista foi o último dos profetas. Considerado pelos cristãos como o anunciador de Jesus Cristo, baptizou muitos judeus, incluindo Jesus, no rio Jordão.

Alberto Lima não conhece a lenda. “Não faço ideia de onde é que vem a tradição”. Com 21 anos, nunca ouviu falar de um santo numa gruta. O que sabe – até porque, na circunstância, é isso que lhe importa – é que, “ainda faltam muitos quilómetros” até ao fim da empreitada. Como os termómetros para lá dos trinta graus, a camisola preta não terá sido uma grande ideia. “Só reparei quando o sol começou a bater com força”.

Como todos os outros caminhantes, Alberto e os amigos hidratam-se. A diferença estará, por ventura, na bebida escolhida. “O que é isso aí na garrafa?”. “Não faço ideia”.

A um passo do final

Quando acaba o empedrado, começa a poeira. Cinco horas depois dos primeiros passos, uma estrada em obras é só mais um obstáculo, até porque nada quebra o entusiasmo de quem já vê, ao longe, a cidade que é o destino final.

Inaugurada há um ano, a nova capela de São João está de portas abertas e, aos poucos, enche-se de fiéis. Alguns desistentes chegam de carro. Entre os que resistiram, aqueles que têm o passo mais ligeiro, são os primeiros a tomar o seu lugar naquele que será o último grande momento, antes da entrada no Porto Novo. Os obstinados seguem adiante, sem paragens.

Às duas da tarde, milhares de pessoas compõem o cenário. Rostos cansados e transpirados de quem acaba de cumprir o desafio a que se propusera. Transposto tudo o resto, o que falta até à igreja paroquial já não é mais do que um pequeno passeio. Lá estarão ao bater das 15 horas.


Publicado no Expresso das Ilhas de 30 de Junho de 2010

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Uma sopa de esperança


No centro do Mindelo, a escassos metros do Hotel Porto Grande, há uma casa que se abre para oferecer sopa àqueles que querem saciar a fome e deixar de lado a solidão.

Todos os Sábados, na Igreja do Nazareno do Mindelo, há um ritual que se repete. Por volta do meio-dia, as portas do lugar sagrado abrem-se e o espaço transforma-se em cantina comunitária. Ao longo das horas seguintes, cerca de 80 pessoas transpõem o muro do preconceito à procura de uma refeição quente, alimento para o corpo e para o espírito.

Há três anos que é assim. A ideia, surgida nos meses anteriores, materializou-se a 20 de Janeiro de 2007. Um grupo de voluntários uniu esforços e pôs de pé um projecto social que, à data, como agora, marca a diferença no dia a dia daqueles para quem o pouco é muito mais do que conseguem alcançar.

A Casa da Sopa é um ponto de encontro de vidas que se confundem, quase sempre, com infelicidade. O objectivo de quem lá trabalha é fazer da tristeza, sinónimo de esperança e do infortúnio, razão de oportunidade.

“Ao longo deste período, as pessoas ganharam confiança e hoje temos beneficiários de vários escalões etários. Começámos com a terceira idade e agora temos jovens e crianças que são, igualmente, beneficiados”. Quem o afirma é o Pastor Fontes, responsável pela igreja e que, desde o primeiro minuto, fomentou o espírito “voluntarioso e altruísta” da iniciativa.

Um projecto com custos, suportados pela boa-vontade de quem dedica o seu tempo a uma Casa que é uma causa. “Custa manter o projecto. Felizmente, temos uma equipa de voluntários e parceiras que nos ajudam a suportar os gastos”.

“As pessoas foram aprendendo, ao longo deste período, a valorizar o espaço, mas claro que há custos”.

Além de distribuir uma refeição quente, a equipa de Casa da Sopa aproveita a ocasião para transmitir algumas noções de higiene e oferecer roupas. São ainda prestados cuidados médicos primários, a quem precisar. “Mesmo fazendo pouco, estamos a contribuir para a melhoria da sociedade”.

Um outro alimento

Mas não é só o corpo dos beneficiários que os voluntários do centro querem alimentar. A Casa procura ser, igualmente – “é o mais importante” – um lugar de conforto e companhia, junto daqueles que vivem, muitas vezes, em situação de solidão profunda.

Hélder Fontes tem 20 anos e é estudante de psicologia. Voluntário no centro, descreve a experiência como “uma alegria”. Não se cansa de elogiar os méritos da iniciativa. “O mais enriquecedor é, todos os sábados, ver cada um a chegar”. No contacto semanal, aproveita para pôr em prática o que aprende na universidade. Também neste ponto, a experiência tem sido “muito enriquecedora”.

“Aqui ou na rua, quando me cruzo com eles, tento saber como estão, como correu a semana. Conversamos sobre os seus problemas, sobre as suas alegrias e os seus anseios. Cada pessoa tem as suas necessidades próprias”.

Dos mais novos aos mais velhos, o grupo de utentes da Casa da Sopa é, já se sabe, heterogéneo. Hélder Dias trabalha, fundamentalmente, com jovens e adolescentes. Procura ser “directo com eles”, o que é favorecido pela proximidade de idades entre quem fala e quem escuta.

“Todos os sábados, encontro aqui uma série de problemas que vão ao encontro do que faço na minha escola”.

Precisamente, é de serem ouvidos que muitos dos que recorrem à Casa da Sopa mais precisam. Para o Pastor Fontes, não há segredos. “Eles desabafam sobre as suas grandes necessidades emocionais, mas também sobre as suas grandes necessidades espirituais. Algumas pessoas, especialmente na terceira idade, vivem solitárias”. Para elas, a companhia que encontram no local é uma “oportunidade”.

Disponibilidade e paciência são, bem se entende, duas qualidades fundamentais de qualquer voluntário. “Eu peço sempre aos voluntários para que tenham um espírito de paciência e tolerância. O sentimento da tolerância é muito importante. Ele ajuda-nos a conseguir dar às pessoas aquilo que elas realmente procuram”.

“As pessoas dizem-nos: hoje, não vou à casa da sopa, apenas pela sopa. As pessoas que ajudamos sabem que aqui recebem uma palavra de encorajamento e de estímulo”.

Para que as mais de oito dezenas de beneficiários se sintam “em casa”, é importante “saber acolher”.

Ialmar Semedo é outro voluntário do projecto. Aos 26 anos, este estudante de teologia já percebeu que “é preciso saber integrar”.

“Muitos passam dificuldades, momentos difíceis. Outros saíram de casa por causa de uma briga entre familiares. Aqui tentamos mostrar-lhes que, na vida, há sempre uma alternativa. Por isso, quando lhes dizemos algo de bom, eles mostram a sua face de alegria”, explica. “Hoje em dia há um problema de confiança entre as pessoas”.

Uma gota

Apesar do sucesso do projecto social, o Pastor Fontes sabe que as 80 pessoas ajudadas, uma vez por semana, representam apenas “uma gota no oceano das necessidades de São Vicente”. Mas isso não o desmotiva.

“Se muitas pessoas colocarem muitas gotas, esta ilha conseguirá suprir muitas dificuldades. Se outros grupos tiverem a oportunidade de reunir com pessoas e oferecer-lhes aquilo que eles precisam, isso será benéfico para todos.

“Teremos uma cidade mais harmoniosa”, resume. O responsável da igreja vai mesmo mais longe: “Não viveremos algumas situações de violência que estamos a viver”. Para tal, é necessária a mobilização de quem “esteja disposto a ajudar”.

“Podemos imaginar situações em que, um dia, estaremos na mesma circunstância. E, nessa altura, precisaremos de alguém para nos ajudar”. Aos mais incrédulos, o recado: “hoje sou eu, amanhã podes ser tu”.

Publicado no Expresso das Ilhas de 5 de Maio de 2010.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Os dois lados da revolta

A Guiné está de novo debaixo de uma enorme tensão. A 1 de Abril, António Indjai e Bubo Na Tchuto lideraram uma revolta militar, que levou à prisão do Primeiro-ministro, Carlos Gomes Junior – entretanto libertado – e do Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas, José Zamora Induta. A instabilidade política no país não é uma novidade e o normal funcionamento das instituições democráticas voltou a ser adiado.


António Indjai

Até há pouco vice-chefe de Estado-maior, o número dois da hierarquia militar guineense aliou-se a Bubo Na Tchuto e destituiu o seu antigo superior.

Indjai já tinha sido adjunto de Baptista Tagme Na Waie, morto um dia antes do assassinato de Nino Viera.

O seu poder nas forças armadas é expressivo. Sob a sua égide estavam o batalhão de Mansoa, o maior e mais poderoso do país.

No final de Março, teria deixado o cargo, por suspeitas de ligação a uma rede de narcotráfico. Deveria estar em Havana, “a receber tratamento médico”.


Bubo Na Tchuto

O outro protagonista da revolta de 1 de Abril é descrito como “um dos mais temíveis guerreiros” guineenses. Carlos Narciso, jornalista português, que o entrevistou durante a guerra civil que assolou o país recorda que, à data, Bubo Na Tchuto “vestia a farda de uma dos oficiais inimigos mortos em combate”.

O antigo comandante da Armada estava refugiado nas instalações da ONU, em Bissau. Sobre ele recai uma acusação de tentativa de golpe de Estado. Durante a revolta de 1 de Abril, saiu das instalações das Nações Unidas e mostrou-se disposto a “cometer barbaridades”.


Carlos Gomes Junior

O Primeiro-ministro da Guiné-Bissau nasceu a 19 de Dezembro de 1949. Na manhã de 1 de Abril foi feito refém. Horas mais tarde foi novamente conduzido ao seu gabinete, na viatura de um oficial das Forças Armadas, de onde saiu para casa, sob controlo militar.

Viria a reassumir funções, mas especula-se sobre a sua substituição. O próprio e o partido que dirige (PAIGC) negam essa possibilidade, embora o líder do executivo admita sair “quando for factor de instabilidade”. Na Tchuto quer que Júnior responda “pelos actos que praticou”, mas não especificou quais.


José Zamora Induta

Zamora Induta, de 44 anos, detido e deposto do cargo de chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMFA) da Guiné-Bissau, assumiu funções em Março de 2009.

Foi confirmado no cargo, depois de ter exercido funções interinamente, após os assassínios do antigo CEMGFA, general Tagmé Na Waié, e do ex Presidente, Nino Vieira.

Detidos com Zamora Induta foram vários oficiais superiores. Entre eles, o coronel Samba Djaló, director da contra inteligência militar.


Publicado no Expresso das Ilhas (Cabo Verde) 436, de 7 de Abril de 2010

Chegou a hora da decisão

Britânicos vão às urnas a seis de Maio. Dois homens disputam o número 10 de Downing Street. Só um pode ganhar.

A data era dada como certa. Apesar disso, o encontro de ontem do primeiro-ministro britânico com Isabel II foi aguardado com grande expectativa. Seguindo o protocolo, Gordon Brown foi a Buckingam Palace pedir a Isabel II a dissolução do Parlamento e a convocação de eleições legislativas. Assim será. Os britânicos vão às urnas em menos de um mês, a seis de Maio.

A escolha é simples: De um lado, o actual chefe de Governo, não eleito, que substituiu Tony Blair, quando este renunciou ao cargo. Do outro, David Cameron, o ambicioso líder do Partido Conservador, arredado do poder há treze anos.

O que está em jogo é, por ventura, mais complexo. Se é certo que o líder trabalhista joga, neste round, uma cartada decisiva no seu futuro político – afinal Brown é Primeiro-Ministro sem nunca ter vencido eleições – não é menos verdade que os conservadores precisam de chegar ao poder e afastar de vez os fantasmas de John Major e Margaret Thatcher. Cameron quer provar que o seu partido ainda é capaz de chegar ao Governo, mas sabe que pode ser traído pela sua ‘tenra idade’.

Para que lado vai pender a balança? A resposta será conhecida dentro de poucas semanas.



Partido Conservador
David Cameron

“Tudo se resume a não ter de aguentar mais cinco anos de Gordon Brown”. A frase de David Cameron foi proferida às primeiras horas da manhã de terça-feira, pouco depois da oficialização da data das eleições legislativas de seis de Maio.

“Mudança” tem sido a palavra mais ouvida nos últimos tempos entre os conservadores, à qual se juntou um quase slogan: “voto pela esperança, voto pelo optimismo e voto pela mudança”.
David William Donald Cameron nasceu a 9 de Outubro de 1966. É o actual líder do Partido Conservador.

Depois de 40 anos a eleger presidentes de origens humildes, os conservadores deixaram-se convencer pelos argumentos de um aristocrata, eleito em 2005, e que tem agora a grande oportunidade de mostrar, afinal, o que vale.

O que se sabe de Cameron vai do 8 ao 80. Por um lado, faz parte do exclusivo clube Mayfair, do qual também é membro o príncipe Carlos. Por outro, gosta de ‘indie rock’ e desloca-se em Londres na sua bicicleta de montanha. Aliás, é assim que costuma chegar a Westminster.
Os anos 90 representaram a sua entrada no Parlamento.

Alguns opositores acusam-no de imaturidade política e olham para a sua idade como um sinal de incapacidade em lidar com os desafios económicos do país. Resta saber o que dirão os eleitores.



Partido Trabalhista
Gordon Brown

“É provavelmente o segredo menos bem guardado dos últimos anos, mas a rainha aceitou dissolver o Parlamento e as legislativas vão realizar-se a 6 de Maio”, disse ontem Gordon Brown, à saída do encontro com Isabel II.

“A Grã-Bretanha está no caminho da recuperação e nada do que façamos deve ameaçar esse caminho”, acrescentou, antes de voltar a elogiar a gestão que tem feito da crise.

James Gordon Brown nasceu a 20 de Fevereiro de 1951. O actual Primeiro-Ministro britânico chegou ao topo da hierarquia governamental em 2007, com a saída de Tony Blair. Era, até então, Ministro das Finanças e braço direito do carismático líder trabalhista.

Brown é doutorado em história e trabalhou, durante alguns anos, como jornalista televisivo. A política falou mais alto e, em 1983, foi eleito para a Casa dos Comuns.

O seu papel como responsável pela pasta das finanças conferiu-lhe alguma credibilidade. Foi o autor de uma ousada e bem sucedida reforma monetária e fiscal.

O maior problema do presidente dos ‘Labours’ é a falta de popularidade. O seu ‘cinzentismo’, em contraste com a notoriedade de Blair, a par de algumas gafes embaraçosas, colocaram-no numa posição difícil.

Tem vindo a recuperar terreno - e a gestão da crise internacional correu-lhe bem - mas não é certo que isso seja suficiente para vencer a corrida.


Publicado no Expresso das Ilhas (Cabo Verde) 436, de 7 de Abril de 2010

Morreu o homem que sonhava com um país de brancos


O líder extremista sul-africano foi morto em sua casa por dois camponeses. Defensor da supremacia racial branca, nunca se conformou com o fim do apartheid.

As semelhanças entre a bandeira do movimento que liderava e a cruz suástica do Partido Nazi alemão não deixam grande margem para dúvidas sobre as intenções de Eugène Terre’Blanche, o líder da extrema-direita sul-africana, morto sábado à noite, na sua quinta, em Ventersdorp.

Terre’Blanche foi um dos rostos do apartheid. Durante o regime, chegou a dirigir os serviços secretos do país. Com o fim da divisão racial, afirmou-se como líder do Afrikaner Resistance Movement (AWB), partido que recuperou recentemente a sua força e protagonismo.

Quando foi atacado, estaria sozinho na propriedade onde morava. A polícia ainda o encontrou com vida.

Um jovem de 15 anos confessou a autoria do crime. O menor, que pastoreava gado para o supremacista branco, terá dito à sua mãe que ele e um antigo trabalhador da quinta espancaram Terre’Blanche até à morte, porque este não lhes pagava o salário “há vários meses”.

Em entrevista à AP Television News, um dos alegados autores relatou que quando perguntaram pelo pagamento dos seus salários, em dívida desde Dezembro, Terre'Blanche disse-lhes que se assegurassem primeiro que todo o gado tinha regressado da pastagem. Depois de o terem feito, Terre’Blanche continuou a não lhes pagar. O trabalhador mais velho, de 21 anos, saiu e voltou armado. Os dois golpearam a vítima e, em seguida, entregaram-se na esquadra da polícia. Segundo o agressor, as suas últimas palavras foram de ameaça: “vou matar-vos e atirar-vos para o inferno.”

O crime aconteceu num país que tem uma das mais elevadas taxas de assassínios diários: 50, num universo de 50 milhões de habitantes.

Aumento da tensão racial

O assassinato do fazendeiro e líder político, de 69 anos, provocou um imediato aumento das tensões raciais na África do Sul.

Membros do partido de Terre’Blanche, AWB, apressaram-se a acusar o líder da juventude do Congresso Nacional Africano (ANC), Julius Malema, de ter espalhado “um discurso de ódio”.
Em causa está uma canção entoada por Malema, num encontro com jovens. “Kill the Boer”. Em afrikaans, “boer” significa agricultor, mas o termo é usado para designar os brancos.

A letra do tema é de tal forma polémica que o Supremo Tribunal sul-africano já a proibiu. O ANC contesta a decisão e justifica a sua sucessiva utilização como um apelo à herança cultural do país.
De acordo com o presidente da associação de agricultores AgriSA, Johannes Moller, tem havido um número crescente de ataques a quintas nas últimas semanas. Desde 1994, altura da abertura democrática, mais de 1700 agricultores brancos e 1600 trabalhadores rurais negros foram mortos.

Terre’Blanche fora condenado a seis anos de prisão em 2001 – só cumpriu metade da pena – por tentativa de assassínio de um antigo guarda de segurança, Paul Motshabi, que ficou paralisado e incapaz de falar durante meses.

André Thomashausen, professor de Direito Internacional Comparado, na Universidade da África do Sul (UNISA), citado pela agência Lusa, entende que “o assassínio brutal e extremamente violento de Eugene Terre’Blanche se insere num quadro de homicídios igualmente brutais e sistemáticos de brancos de origem Afrikaner”.

Campeonato do Mundo ameaçado

A tensão que se gerou após a notícia chegou mesmo ao Mundial de 2010, a poucos meses do início da competição. Um membro do AWB avisou os países que estarão presentes no campeonato de futebol para não enviarem as suas selecções para “uma terra de assassinos”.

Andre Visagie, sentenciou que a morte de Terre’Blanche “é uma declaração de guerra” dos negros contra os brancos.

“Vamos avisar essas nações: ‘estão a mandar as vossas selecções para uma terra de assassinos’. Não o façam, se não tiverem protecção suficiente para elas”, avisou.

Em resposta, o presidente da África do Sul, Jacob Zuma, apelou à calma, pedindo aos “sul-africanos para não permitirem que agentes provocadores possam tirar vantagem da situação para incentivar ou incendiar o ódio racial”.

Numa leitura da situação, o director do jornal português O Século de Joanesburgo, Varela Afonso, manifestou não ter dúvidas de que está a ser feito um “aproveitamento político” da morte do líder político.

“Estão a aproveitar-se porque o Mundial de Futebol é a bandeira do país. É um aproveitamento político”, entende o jornalista.

O Campeonato Mundial de Futebol 2010 disputa-se de 11 de Junho a 11 de Julho, na África do Sul. Trata-se da primeira vez que um país africano acolhe a fase final do torneio.


Publicado no Expresso das Ilhas (Cabo Verde) 436, de 7 de Abril de 2010