domingo, 11 de julho de 2010

Viagem do torno à prensa


Há uma década que, no Mindelo, a família Alves faz da formação profissional em metalomecânica o seu modo de vida. A escola que lhes paga as contas é a tábua de salvação para muitos jovens que procuram uma alternativa para o mais que certo desemprego.

Antes de regressar a Cabo Verde, Augusto Alves, ou Ti Nené, como é conhecido, andou pelo mundo, a bordo de um dos gigantes que cruzam os oceanos. Um dia, algures nos finais da década de 70, apercebeu-se de um futuro não muito risonho em perspectiva e decidiu trocar o mar por terra firme. No arquipélago, casou-se e instalou-se por conta própria. O marinheiro tornou-se técnico metalomecânico e começou, então, a escrever a história que o levou até à Escola de Formação Profissional Padre Filipe Pereira (EFPPFP), de onde, em finais de Junho, um grupo de 15 jovens saiu com um diploma na mão.

Por entre as máquinas, a maior parte delas nascidas das sua mãos, Mestre Nené circula com a ligeireza de quem conhece o chão que pisa. O pavilhão que é hoje a escola profissional que, em conjunto com a mulher, dirige desde o final da década de 90, é, em grande medida, a sua casa. Por lá passa a maior parte dos dias. A ensinar ou a imaginar – e a desenhar – os futuros engenhos que, depois de vendidos, asseguram o financiamento do projecto.

Constituída como uma sociedade por quotas, a EFPPFP subsiste das receitas que consegue gerar, seja pela venda de equipamentos, ou pela prestação de serviços a terceiros. Anilda Alves, fundadora e directora-geral da instituição, acredita que, pelas suas características, muitos ainda olham com alguma desconfiança para o estabelecimento de ensino privado.

“O nosso funcionamento é subsidiado pela prestação de serviços a terceiros. Trabalhamos na área naval, na construção civil e em muitas outras áreas. Há sempre dificuldades em conseguir apoios. O que é certo é que estamos a fazer um trabalho sério”.

Ainda assim, algumas das acções de formação têm o apoio do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP). Começou ontem o quinto curso co-financiado. Anilda não sabe quantos técnicos a escola formou. Depois de mais de uma década de actividade, serão algumas dezenas, por certo. Jovens a quem foi dado um rumo de vida e ensinada uma profissão.

“O mais aliciante é a garantia de que, no futuro, que faz o curso, não vai passar mal. Quem sabe fazer alguma coisa, safa-se na vida. E esta é uma formação polivalente, que dá capacidades em várias áreas”, explica o Mestre Nené. “Porque é que havemos de ser vassouras, quando podemos ser oficiais?”, questiona.

Tudo começou em 1998. Depois de uma experiencia empresarial mais tradicional, também ela com uma “preocupação pedagógica”, Anilda e Nené, marido e mulher, optaram por um novo investimento que juntasse o útil ao agradável.

A escola abriu portas, embora só tenha sido oficialmente reconhecida como tal em 2001. Os primeiros anos de actividade foram singulares. Na fundação, um projecto levou crianças de rua a aprender um ofício. Depois, um programa pioneiro de artesanato em madeira, que viria a ser interrompido a meio.

Actualmente, a formação centra-se na metalomecânica. A preocupação é dotar os formandos das “competências necessárias para serem capazes e fazer mais do que uma coisa”.

“Sabemos que o mercado de trabalho em Cabo Verde é limitado”, justifica a directora. “A formação não pode ser demasiado especializada, senão vai haver um afogamento”, esclarece.

“O jovem é treinado versatilmente. De tal forma que, quando não houver trabalho numa área, ele tem capacidade, de passar para outra”.

Cada curso dura 9 meses. Um ano lectivo de formação intensa, com uma forte componente prática, sem descurar as bases teóricas. Matemática, geometria e desenho técnico são algumas das disciplinas que constam do plano curricular.

“Os alunos têm 9 meses de grande aprendizagem. O aluno, nos primeiros tempos, começa a ter noção de todo o funcionamento da escola, das máquinas e de como é que se trabalha. Mas não perdemos muito tempo com teoria. Estes jovens já saem da escola com a cabeça preguiçosa. Apostamos, fundamentalmente, na componente prática”.

Projecto de vida

A Padre Filipe é também uma escola para a vida. A maior parte dos alunos que frequentam os cursos profissionais têm um historial de insucesso escolar e a formação profissional é a última alternativa, a derradeira possibilidade de adquirir habilitações que possibilitem encarar o futuro com algum confiança.

Os responsáveis defendem que, mais importante do que a escolaridade adquirida, o sucesso reside na “capacidade latente na própria pessoa”.

Dia após dia, Ti Nené regista a evolução dos seus alunos. “Quando chegam, a cabeça está a zero. Depois de oito ou nove meses connosco, já não se sentem perdidos. Sentem que tem qualquer coisa para suportar o peso do mundo. Estão orientados”.

“A Terra está um bocado perigosa para obter trabalho. Mas haverá sempre alguma coisa para construir ou reparar”, sustenta, com uma certeza: “tenho confiança de que estes que passaram por aqui não vão ser bandidos”.

Foi à procura de certezas que Élvis Guilherme bateu à porta da EPPJP. O pai, amigo de longa data do ‘mestre do ferro’, falara-lhe do que por lá se faz. Curioso, com o décimo primeiro ano incompleto, e aos 22 anos, foi saber mais. Gostou do que lhe disseram e inscreveu-se. Agora, com o diploma na mão e enquanto não consegue emprego, ocupa-se a exercitar o que lhe ensinaram.

“Sempre quis fazer alguma coisa, sempre quis aprender um ofício. Surgiu esta oportunidade e resolvi agarra-la”.

Élvis gostou da experiência - “o curso foi espectacular, muito bom e aprendi muitas coisas” - e reconhece a utilidade dos meses que passou a soldar e a furar: “acho que já começou a ser útil para mim. Mudei a minha maneira de ver as coisas e encaro a vida com mais responsabilidade e confiança. Daqui para a frente quero arranjar um trabalho”.

Da mesma opinião partilha David Santos. Já formado, continua a ocupar o tempo livre por entre as máquinas nas quais aprendeu a ser metalomecânico. “Já ouvira falar do Mestre Nené há muito tempo e sempre quis vir para aqui”. Terminou o décimo segundo ano e matriculou-se. “Agora quero arranjar um emprego”.

Para Ti Nené, o momento em que um aluno acaba a sua formação é o mais reconfortante. “É para isso que cá estamos”. “O dever cumprido é o mais importante. Sentimo-nos reconfortados pelo que fazemos”.

Anilda e Ti Nené poderiam ter optado por outro modelo de negócio. Antes da escola, dirigiam uma empresa que, confrontada com dificuldades de mercado, acabou por fechar. Tendo com único diploma o de marinheiro, passado no Mindelo, ainda no tempo colonial, Mestre Nené aprendeu metalomecânica com a vida. “Nunca tive dificuldade em mudar de profissão e adaptar-me a novas circunstâncias”. É com “muito gosto” que mantém a escola de portas abertas e a escolha pela via da formação profissional acabou por ser natural.

“Percebemos que havia uma grande carência de mão-de-obra qualificada”, avalia Anilda Alves. “O espírito é muito diferente do que numa empresa normal. É melhor formar pessoal e elevar essa rapaziada a um nível bom. Temos a certeza que qualquer um destes homens, no mercado internacional, se safará sem grandes dificuldades. É uma grande alegria vê-los sair daqui com bases que fazem sucesso com qualquer empresário”, acrescenta o marido.

O futuro

Nos anos 60, Filipe Pereira, padre, foi o primeiro director do colégio dos Salesianos, em São Vicente. A instituição, que continua hoje uma referencia na ilha, foi pioneira na formação profissional. Augusto Alves quis homenagear a figura histórica do Mindelo e optou pelo nome do sacerdote para a escola profissional que fundou.

A EFPPFP funciona hoje num armazém na estrada para Calhau. Embora amplo, o espaço é insuficiente. Nele já não cabe a ambição do casal, que sonha com melhores condições, para alargar a oferta formativa. Em estudo, a criação de um curso em mecânica auto, a par de um outro, em electricidade. Tudo dependerá, contudo, da concretização do projecto de arquitectura, já aprovado, mas que, por falta de financiamento, continua dentro da gaveta.

Quando estiver concluída a ampliação, a Escola Filipe Pereira terá mais quatro salas, com fins diversos, da biblioteca à informática. “A minha ambição”, explica Anilda, “é alargar a escola, no sentido de termos mais alunos, e criarmos mais áreas de formação, com um staff maior”. A directora não tem dúvidas: “é um sonho para se concretizar aos poucos”.


publicado no Expresso das Ilhas (Cabo Verde) de 7 de Maio de 2010

terça-feira, 6 de julho de 2010

Sete horas com o santo às costas


Todos os anos, a tradição cumpre-se em Santo Antão. Durante as festas do padroeiro, milhares de pessoas fazem a pé os mais de vinte quilómetros que ligam Ribeira das Patas ao Porto Novo.

“Ide em paz e que o senhor vos acompanhe”. Com a bênção final, ao encerrar a breve oração colectiva, Pier Aldo, pároco de Porto Novo, marca o início da peregrinação para as centenas de fieis que, no início da manhã de 23 de Junho, se aglomeram nas imediações da igreja de Ribeira das Patas. Todos os anos é assim. Na véspera do São João, a imagem do padroeiro sai do altar onde repousa e é transportada, ao longo de quase 25 quilómetros, serra abaixo, até à cidade de Porto Novo.

O dia começou cedo para Antonieta Carvalho. Há uma década, “sem nunca falhar”, que cumpre a tradição de, na véspera do dia feriado, sair da cama mais cedo do que o costume. “Pelas cinco horas já estava de pé”, revela. Depois de um pequeno-almoço reforçado, parte de casa dos familiares que a recebem – é de São Vicente – e percorre, desta vez de carro, a estrada que a conduzirá até à povoação à qual todos os caminhos parecem levar.

“A manhã vai ser longa e por isso é importante estarmos bem alimentados”, considera. “O que me move é uma grande fé a São João Baptista. É muito bonito fazer este caminho”.

Pontualmente, às oito da manhã, a imagem está no adro. Serão precisas sete horas até que o cortejo entre na cidade. Durante esse tempo haverá sempre alguém a tocar tambor ou a dançar ao compasso do som da percussão.

A temperatura aumentará e o calor recordará porque é que esta é uma terra árida. Às 8:30, uma primeira pausa. Alguns minutos bastam para recuperar energias. Com o sol a subir no céu, abrem-se as primeiras garrafas de cerveja. O grogue há muito que vai enchendo os copos de plástico.

Carrinhas, com ‘lanchonetes’ mais ou menos improvisadas, socorrem a sede e a fome dos peregrinos. Tanta gente junta será sempre uma boa oportunidade de negócio.

O ‘sumo de cevada’, em garrafas de 25 centilitros, é o que tem maior saída, mas também há refrigerantes, água, pastéis, torresmos e moreia. É só escolher.

A massa humana aumenta com os quilómetros percorridos. A cada instante, uma nova cara junta-se à caminhada. Muitos levam ao pescoço peculiares rosários, com contas feitas de mancarra, massa de pão ou pipocas. Pelas 9 horas, já é difícil perceber onde começa e acaba o grupo.

Matar saudades

Acima de tudo, a peregrinação de São João Baptista é um grande momento de festa. De toda a ilha, mas também do resto do arquipélago e da emigração, acorre gente movida não só pela fé, mas pela oportunidade de rever velhos amigos e familiares.

Isaurina Silva vive nos Estados Unidos. A viagem de avião entre Boston e a Praia demora quase tanto quanto o trajecto que se propõe a fazer. Nasceu em Santo Antão, mas partiu cedo, procurando fugir à pobreza e à aridez da terra. Regressa uma vez a cada doze meses, mas fá-lo em estreia durante as festas do padroeiro. Às dez e meia, depois de Lagedos e antes de Ponte Sul, segue caminho com uma garrafa de água na mão, acompanhada pela filha.

“Nunca tinha vindo. Felizmente, este ano, consegui tirar férias nesta altura. Estou cansada mas a gostar muito. Devagar se chega lá”.

Em menos de três horas já reviu amigos de infância e familiares afastados a quem tinha perdido o rasto. “Já vi gente de quem não sabia nada há muitos anos. Uns estão na Holanda, outros em Portugal e outros ficaram mesmo aqui”.

Em cada povoação, um altar, para fazer descansar as costas dos que carregam São João Baptista, e uma mesa, para aliviar os estômagos madrugadores.

Quem conta um conto

Diz o povo que quem conta um conto, acrescenta um ponto. A julgar pelas variações existentes em torno dos motivos que levaram à criação da peregrinação, talvez o ditado tenha razão de existir.

Todas convergem, contudo, na certeza de que terá começado quando uma imagem do agora padroeiro foi encontrada à beira-mar. Uma mulher transportou-a para uma gruta, transformando-a em local fé. João Baptista foi o último dos profetas. Considerado pelos cristãos como o anunciador de Jesus Cristo, baptizou muitos judeus, incluindo Jesus, no rio Jordão.

Alberto Lima não conhece a lenda. “Não faço ideia de onde é que vem a tradição”. Com 21 anos, nunca ouviu falar de um santo numa gruta. O que sabe – até porque, na circunstância, é isso que lhe importa – é que, “ainda faltam muitos quilómetros” até ao fim da empreitada. Como os termómetros para lá dos trinta graus, a camisola preta não terá sido uma grande ideia. “Só reparei quando o sol começou a bater com força”.

Como todos os outros caminhantes, Alberto e os amigos hidratam-se. A diferença estará, por ventura, na bebida escolhida. “O que é isso aí na garrafa?”. “Não faço ideia”.

A um passo do final

Quando acaba o empedrado, começa a poeira. Cinco horas depois dos primeiros passos, uma estrada em obras é só mais um obstáculo, até porque nada quebra o entusiasmo de quem já vê, ao longe, a cidade que é o destino final.

Inaugurada há um ano, a nova capela de São João está de portas abertas e, aos poucos, enche-se de fiéis. Alguns desistentes chegam de carro. Entre os que resistiram, aqueles que têm o passo mais ligeiro, são os primeiros a tomar o seu lugar naquele que será o último grande momento, antes da entrada no Porto Novo. Os obstinados seguem adiante, sem paragens.

Às duas da tarde, milhares de pessoas compõem o cenário. Rostos cansados e transpirados de quem acaba de cumprir o desafio a que se propusera. Transposto tudo o resto, o que falta até à igreja paroquial já não é mais do que um pequeno passeio. Lá estarão ao bater das 15 horas.


Publicado no Expresso das Ilhas de 30 de Junho de 2010