Há uma década que, no Mindelo, a família Alves faz da formação profissional em metalomecânica o seu modo de vida. A escola que lhes paga as contas é a tábua de salvação para muitos jovens que procuram uma alternativa para o mais que certo desemprego.
Antes de regressar a Cabo Verde, Augusto Alves, ou Ti Nené, como é conhecido, andou pelo mundo, a bordo de um dos gigantes que cruzam os oceanos. Um dia, algures nos finais da década de 70, apercebeu-se de um futuro não muito risonho em perspectiva e decidiu trocar o mar por terra firme. No arquipélago, casou-se e instalou-se por conta própria. O marinheiro tornou-se técnico metalomecânico e começou, então, a escrever a história que o levou até à Escola de Formação Profissional Padre Filipe Pereira (EFPPFP), de onde, em finais de Junho, um grupo de 15 jovens saiu com um diploma na mão.
Por entre as máquinas, a maior parte delas nascidas das sua mãos, Mestre Nené circula com a ligeireza de quem conhece o chão que pisa. O pavilhão que é hoje a escola profissional que, em conjunto com a mulher, dirige desde o final da década de 90, é, em grande medida, a sua casa. Por lá passa a maior parte dos dias. A ensinar ou a imaginar – e a desenhar – os futuros engenhos que, depois de vendidos, asseguram o financiamento do projecto.
Constituída como uma sociedade por quotas, a EFPPFP subsiste das receitas que consegue gerar, seja pela venda de equipamentos, ou pela prestação de serviços a terceiros. Anilda Alves, fundadora e directora-geral da instituição, acredita que, pelas suas características, muitos ainda olham com alguma desconfiança para o estabelecimento de ensino privado.
“O nosso funcionamento é subsidiado pela prestação de serviços a terceiros. Trabalhamos na área naval, na construção civil e em muitas outras áreas. Há sempre dificuldades em conseguir apoios. O que é certo é que estamos a fazer um trabalho sério”.
Ainda assim, algumas das acções de formação têm o apoio do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP). Começou ontem o quinto curso co-financiado. Anilda não sabe quantos técnicos a escola formou. Depois de mais de uma década de actividade, serão algumas dezenas, por certo. Jovens a quem foi dado um rumo de vida e ensinada uma profissão.
“O mais aliciante é a garantia de que, no futuro, que faz o curso, não vai passar mal. Quem sabe fazer alguma coisa, safa-se na vida. E esta é uma formação polivalente, que dá capacidades em várias áreas”, explica o Mestre Nené. “Porque é que havemos de ser vassouras, quando podemos ser oficiais?”, questiona.
Tudo começou em 1998. Depois de uma experiencia empresarial mais tradicional, também ela com uma “preocupação pedagógica”, Anilda e Nené, marido e mulher, optaram por um novo investimento que juntasse o útil ao agradável.
A escola abriu portas, embora só tenha sido oficialmente reconhecida como tal em 2001. Os primeiros anos de actividade foram singulares. Na fundação, um projecto levou crianças de rua a aprender um ofício. Depois, um programa pioneiro de artesanato em madeira, que viria a ser interrompido a meio.
Actualmente, a formação centra-se na metalomecânica. A preocupação é dotar os formandos das “competências necessárias para serem capazes e fazer mais do que uma coisa”.
“Sabemos que o mercado de trabalho em Cabo Verde é limitado”, justifica a directora. “A formação não pode ser demasiado especializada, senão vai haver um afogamento”, esclarece.
“O jovem é treinado versatilmente. De tal forma que, quando não houver trabalho numa área, ele tem capacidade, de passar para outra”.
Cada curso dura 9 meses. Um ano lectivo de formação intensa, com uma forte componente prática, sem descurar as bases teóricas. Matemática, geometria e desenho técnico são algumas das disciplinas que constam do plano curricular.
“Os alunos têm 9 meses de grande aprendizagem. O aluno, nos primeiros tempos, começa a ter noção de todo o funcionamento da escola, das máquinas e de como é que se trabalha. Mas não perdemos muito tempo com teoria. Estes jovens já saem da escola com a cabeça preguiçosa. Apostamos, fundamentalmente, na componente prática”.
Projecto de vida
Os responsáveis defendem que, mais importante do que a escolaridade adquirida, o sucesso reside na “capacidade latente na própria pessoa”.
Dia após dia, Ti Nené regista a evolução dos seus alunos. “Quando chegam, a cabeça está a zero. Depois de oito ou nove meses connosco, já não se sentem perdidos. Sentem que tem qualquer coisa para suportar o peso do mundo. Estão orientados”.
“A Terra está um bocado perigosa para obter trabalho. Mas haverá sempre alguma coisa para construir ou reparar”, sustenta, com uma certeza: “tenho confiança de que estes que passaram por aqui não vão ser bandidos”.
Foi à procura de certezas que Élvis Guilherme bateu à porta da EPPJP. O pai, amigo de longa data do ‘mestre do ferro’, falara-lhe do que por lá se faz. Curioso, com o décimo primeiro ano incompleto, e aos 22 anos, foi saber mais. Gostou do que lhe disseram e inscreveu-se. Agora, com o diploma na mão e enquanto não consegue emprego, ocupa-se a exercitar o que lhe ensinaram.
“Sempre quis fazer alguma coisa, sempre quis aprender um ofício. Surgiu esta oportunidade e resolvi agarra-la”.
Élvis gostou da experiência - “o curso foi espectacular, muito bom e aprendi muitas coisas” - e reconhece a utilidade dos meses que passou a soldar e a furar: “acho que já começou a ser útil para mim. Mudei a minha maneira de ver as coisas e encaro a vida com mais responsabilidade e confiança. Daqui para a frente quero arranjar um trabalho”.
Da mesma opinião partilha David Santos. Já formado, continua a ocupar o tempo livre por entre as máquinas nas quais aprendeu a ser metalomecânico. “Já ouvira falar do Mestre Nené há muito tempo e sempre quis vir para aqui”. Terminou o décimo segundo ano e matriculou-se. “Agora quero arranjar um emprego”.
Para Ti Nené, o momento em que um aluno acaba a sua formação é o mais reconfortante. “É para isso que cá estamos”.
Anilda e Ti Nené poderiam ter optado por outro modelo de negócio. Antes da escola, dirigiam uma empresa que, confrontada com dificuldades de mercado, acabou por fechar. Tendo com único diploma o de marinheiro, passado no Mindelo, ainda no tempo colonial, Mestre Nené aprendeu metalomecânica com a vida. “Nunca tive dificuldade em mudar de profissão e adaptar-me a novas circunstâncias”. É com “muito gosto” que mantém a escola de portas abertas e a escolha pela via da formação profissional acabou por ser natural.
“Percebemos que havia uma grande carência de mão-de-obra qualificada”, avalia Anilda Alves.
O futuro
Nos anos 60, Filipe Pereira, padre, foi o primeiro director do colégio dos Salesianos, em São Vicente. A instituição, que continua hoje uma referencia na ilha, foi pioneira na formação profissional. Augusto Alves quis homenagear a figura histórica do Mindelo e optou pelo nome do sacerdote para a escola profissional que fundou.
A EFPPFP funciona hoje num armazém na estrada para Calhau. Embora amplo, o espaço é insuficiente. Nele já não cabe a ambição do casal, que sonha com melhores condições, para alargar a oferta formativa. Em estudo, a criação de um curso em mecânica auto, a par de um outro, em electricidade. Tudo dependerá, contudo, da concretização do projecto de arquitectura, já aprovado, mas que, por falta de financiamento, continua dentro da gaveta.
Quando estiver concluída a ampliação, a Escola Filipe Pereira terá mais quatro salas, com fins diversos, da biblioteca à informática. “A minha ambição”, explica Anilda, “é alargar a escola, no sentido de termos mais alunos, e criarmos mais áreas de formação, com um staff maior”. A directora não tem dúvidas: “é um sonho para se concretizar aos poucos”.
publicado no Expresso das Ilhas (Cabo Verde) de 7 de Maio de 2010