terça-feira, 6 de julho de 2010

Sete horas com o santo às costas


Todos os anos, a tradição cumpre-se em Santo Antão. Durante as festas do padroeiro, milhares de pessoas fazem a pé os mais de vinte quilómetros que ligam Ribeira das Patas ao Porto Novo.

“Ide em paz e que o senhor vos acompanhe”. Com a bênção final, ao encerrar a breve oração colectiva, Pier Aldo, pároco de Porto Novo, marca o início da peregrinação para as centenas de fieis que, no início da manhã de 23 de Junho, se aglomeram nas imediações da igreja de Ribeira das Patas. Todos os anos é assim. Na véspera do São João, a imagem do padroeiro sai do altar onde repousa e é transportada, ao longo de quase 25 quilómetros, serra abaixo, até à cidade de Porto Novo.

O dia começou cedo para Antonieta Carvalho. Há uma década, “sem nunca falhar”, que cumpre a tradição de, na véspera do dia feriado, sair da cama mais cedo do que o costume. “Pelas cinco horas já estava de pé”, revela. Depois de um pequeno-almoço reforçado, parte de casa dos familiares que a recebem – é de São Vicente – e percorre, desta vez de carro, a estrada que a conduzirá até à povoação à qual todos os caminhos parecem levar.

“A manhã vai ser longa e por isso é importante estarmos bem alimentados”, considera. “O que me move é uma grande fé a São João Baptista. É muito bonito fazer este caminho”.

Pontualmente, às oito da manhã, a imagem está no adro. Serão precisas sete horas até que o cortejo entre na cidade. Durante esse tempo haverá sempre alguém a tocar tambor ou a dançar ao compasso do som da percussão.

A temperatura aumentará e o calor recordará porque é que esta é uma terra árida. Às 8:30, uma primeira pausa. Alguns minutos bastam para recuperar energias. Com o sol a subir no céu, abrem-se as primeiras garrafas de cerveja. O grogue há muito que vai enchendo os copos de plástico.

Carrinhas, com ‘lanchonetes’ mais ou menos improvisadas, socorrem a sede e a fome dos peregrinos. Tanta gente junta será sempre uma boa oportunidade de negócio.

O ‘sumo de cevada’, em garrafas de 25 centilitros, é o que tem maior saída, mas também há refrigerantes, água, pastéis, torresmos e moreia. É só escolher.

A massa humana aumenta com os quilómetros percorridos. A cada instante, uma nova cara junta-se à caminhada. Muitos levam ao pescoço peculiares rosários, com contas feitas de mancarra, massa de pão ou pipocas. Pelas 9 horas, já é difícil perceber onde começa e acaba o grupo.

Matar saudades

Acima de tudo, a peregrinação de São João Baptista é um grande momento de festa. De toda a ilha, mas também do resto do arquipélago e da emigração, acorre gente movida não só pela fé, mas pela oportunidade de rever velhos amigos e familiares.

Isaurina Silva vive nos Estados Unidos. A viagem de avião entre Boston e a Praia demora quase tanto quanto o trajecto que se propõe a fazer. Nasceu em Santo Antão, mas partiu cedo, procurando fugir à pobreza e à aridez da terra. Regressa uma vez a cada doze meses, mas fá-lo em estreia durante as festas do padroeiro. Às dez e meia, depois de Lagedos e antes de Ponte Sul, segue caminho com uma garrafa de água na mão, acompanhada pela filha.

“Nunca tinha vindo. Felizmente, este ano, consegui tirar férias nesta altura. Estou cansada mas a gostar muito. Devagar se chega lá”.

Em menos de três horas já reviu amigos de infância e familiares afastados a quem tinha perdido o rasto. “Já vi gente de quem não sabia nada há muitos anos. Uns estão na Holanda, outros em Portugal e outros ficaram mesmo aqui”.

Em cada povoação, um altar, para fazer descansar as costas dos que carregam São João Baptista, e uma mesa, para aliviar os estômagos madrugadores.

Quem conta um conto

Diz o povo que quem conta um conto, acrescenta um ponto. A julgar pelas variações existentes em torno dos motivos que levaram à criação da peregrinação, talvez o ditado tenha razão de existir.

Todas convergem, contudo, na certeza de que terá começado quando uma imagem do agora padroeiro foi encontrada à beira-mar. Uma mulher transportou-a para uma gruta, transformando-a em local fé. João Baptista foi o último dos profetas. Considerado pelos cristãos como o anunciador de Jesus Cristo, baptizou muitos judeus, incluindo Jesus, no rio Jordão.

Alberto Lima não conhece a lenda. “Não faço ideia de onde é que vem a tradição”. Com 21 anos, nunca ouviu falar de um santo numa gruta. O que sabe – até porque, na circunstância, é isso que lhe importa – é que, “ainda faltam muitos quilómetros” até ao fim da empreitada. Como os termómetros para lá dos trinta graus, a camisola preta não terá sido uma grande ideia. “Só reparei quando o sol começou a bater com força”.

Como todos os outros caminhantes, Alberto e os amigos hidratam-se. A diferença estará, por ventura, na bebida escolhida. “O que é isso aí na garrafa?”. “Não faço ideia”.

A um passo do final

Quando acaba o empedrado, começa a poeira. Cinco horas depois dos primeiros passos, uma estrada em obras é só mais um obstáculo, até porque nada quebra o entusiasmo de quem já vê, ao longe, a cidade que é o destino final.

Inaugurada há um ano, a nova capela de São João está de portas abertas e, aos poucos, enche-se de fiéis. Alguns desistentes chegam de carro. Entre os que resistiram, aqueles que têm o passo mais ligeiro, são os primeiros a tomar o seu lugar naquele que será o último grande momento, antes da entrada no Porto Novo. Os obstinados seguem adiante, sem paragens.

Às duas da tarde, milhares de pessoas compõem o cenário. Rostos cansados e transpirados de quem acaba de cumprir o desafio a que se propusera. Transposto tudo o resto, o que falta até à igreja paroquial já não é mais do que um pequeno passeio. Lá estarão ao bater das 15 horas.


Publicado no Expresso das Ilhas de 30 de Junho de 2010

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