A mais montanhosa das ilhas de Cabo Verde é um destino cobiçado por turistas que procuram o contacto directo com a natureza. Longe dos grandes hotéis e resorts, chegam de França, da Alemanha e de outros países do norte da Europa. O turismo de natureza em Santo Antão, numa reportagem feita com muitos quilómetros nas pernas.
O sol das 11 horas é quente. O Hiace não vai cheio e no seu interior são quase todos turistas. A viagem desde o Porto Novo é rápida e inclui uma paragem, pouco antes da localidade de Janela, para uma curta sessão fotográfica. O cenário é perene e ergue-se imponente à vista de todos. A montanha e o mar. Ouve-se um "ah", seguido de um "uau", rematado com o definitivo "incroyable [incrível]", indício da eventual nacionalidade dos companheiros de viagem.
"Français? [francês]". "Oui [sim]". Raphael veste caqui. A aparência não ilude. Está ali para caminhar e se dúvidas restassem, o próprio cuida de as esclarecer rapidamente. "É a minha primeira vez em Santo Antão. Estive no Sal há uns 10 anos, mas agora quis vir conhecer esta ilha que faz mais o meu género. Não gosto de hotéis cheios de gente. Prefiro estar rodeado de natureza". Habituado a percorrer muitos quilómetros a pé, obriga-se a transportar apenas o essencial. Os poucos pertences de que precisará nos quinze dias seguintes, a passar entre subidas e descidas, cabem na mochila que arrumou no tejadilho da carrinha. "Muito peso só atrapalha".
Junta-se à conversa Louís. "Marcel, Louis Marcel", esclarece. "Pode tratar-me por um nome ou pelo outro". Escolhemos o primeiro e prosseguimos. "Já venho para Santo Antão há muito tempo. Nunca me canso. Conheço todas as ilhas de Cabo Verde, mas esta é a minha preferida".
O veterano também é francês (são-no grande parte dos caminhantes que chegam de fora). "Isto é quase uma peregrinação. Quando me reformar mudo-me para cá definitivamente".
Quem não esperou pela reforma para mudar de vida foram Dominique e Katelijne. Francesa e belga. Foi do Sal que vieram e a sua história conta-se assim: durante dez anos trabalharam juntas num dos ‘resorts' da principal ilha turística do país. Um dia, Dominique percebeu que lhe faltava um refúgio. Do aeroporto Amílcar Cabral apanhou o avião para São Vicente e daí o barco para Porto Novo. Perdidas no Vale do Paul estavam as quatro paredes que serviram de inspiração para o que é hoje a ‘Casa das Ilhas'.
Ei-la lá em cima. Pintada de amarelo, no topo da montanha. "Casa das Ilhas, quartos, 15 minutos", lê-se na placa que convida à subida. O quarto de hora é a pé, entenda-se. Calor, sede e suor em bica. A tudo isso parecem ficar indiferentes os dois homens com a [aparentemente] fácil missão de carregar as malas dos hóspedes encosta acima. Com mestria e treino, rapidamente ganham distância.
Katelijne recebe os forasteiros. "Venha comigo para beber água e lavar a cara".
A vista é arrebatadora. O vale estende-se até ao oceano, rasgando as montanhas rochosas que ainda conservam o verde, apesar dos muitos meses que passaram desde as últimas chuvas.
"Começámos por fazer uma coisa pequena e mesmo antes de abrirmos já tínhamos clientes. Tivemos de dar a nossa cama, porque eles subiram e já não quiseram descer", recorda Dominique.
O cenário mudou ligeiramente. Na sombra do alpendre corre uma aragem. Há um cão. Afinal são dois. Chega uma criança. "O que é que se diz?", pergunta a francesa que desistiu de ter carro "porque aqui não vale a pena". "Bom dia", responde. "É o meu filho".
A casa ficou pronta em Setembro de 2006. "Percebemos que havia potencial". O lugar tornou-se conhecido. "Primeiro, tivemos o voto de confiança de alguns operadores turísticos com os quais já trabalhávamos. Depois, começou a ser o boca a boca, que é sempre a melhor publicidade".
Hoje, são nove os quartos, de decoração simples mas cuidada. Não raras vezes a lotação está esgotada.
Dominique e Katelijne mudaram radicalmente o seu dia-a-dia. Chegadas a Santo Antão, a sua principal preocupação foi integrarem-se na comunidade para a qual contribuem e da qual dependem. Instalaram um jardim infantil e recebem diariamente dezasseis crianças da vizinhança.
O sol das 11 horas é quente. O Hiace não vai cheio e no seu interior são quase todos turistas. A viagem desde o Porto Novo é rápida e inclui uma paragem, pouco antes da localidade de Janela, para uma curta sessão fotográfica. O cenário é perene e ergue-se imponente à vista de todos. A montanha e o mar. Ouve-se um "ah", seguido de um "uau", rematado com o definitivo "incroyable [incrível]", indício da eventual nacionalidade dos companheiros de viagem.
"Français? [francês]". "Oui [sim]". Raphael veste caqui. A aparência não ilude. Está ali para caminhar e se dúvidas restassem, o próprio cuida de as esclarecer rapidamente. "É a minha primeira vez em Santo Antão. Estive no Sal há uns 10 anos, mas agora quis vir conhecer esta ilha que faz mais o meu género. Não gosto de hotéis cheios de gente. Prefiro estar rodeado de natureza". Habituado a percorrer muitos quilómetros a pé, obriga-se a transportar apenas o essencial. Os poucos pertences de que precisará nos quinze dias seguintes, a passar entre subidas e descidas, cabem na mochila que arrumou no tejadilho da carrinha. "Muito peso só atrapalha".
Junta-se à conversa Louís. "Marcel, Louis Marcel", esclarece. "Pode tratar-me por um nome ou pelo outro". Escolhemos o primeiro e prosseguimos. "Já venho para Santo Antão há muito tempo. Nunca me canso. Conheço todas as ilhas de Cabo Verde, mas esta é a minha preferida".
O veterano também é francês (são-no grande parte dos caminhantes que chegam de fora). "Isto é quase uma peregrinação. Quando me reformar mudo-me para cá definitivamente".
Quem não esperou pela reforma para mudar de vida foram Dominique e Katelijne. Francesa e belga. Foi do Sal que vieram e a sua história conta-se assim: durante dez anos trabalharam juntas num dos ‘resorts' da principal ilha turística do país. Um dia, Dominique percebeu que lhe faltava um refúgio. Do aeroporto Amílcar Cabral apanhou o avião para São Vicente e daí o barco para Porto Novo. Perdidas no Vale do Paul estavam as quatro paredes que serviram de inspiração para o que é hoje a ‘Casa das Ilhas'.
Ei-la lá em cima. Pintada de amarelo, no topo da montanha. "Casa das Ilhas, quartos, 15 minutos", lê-se na placa que convida à subida. O quarto de hora é a pé, entenda-se. Calor, sede e suor em bica. A tudo isso parecem ficar indiferentes os dois homens com a [aparentemente] fácil missão de carregar as malas dos hóspedes encosta acima. Com mestria e treino, rapidamente ganham distância.
Katelijne recebe os forasteiros. "Venha comigo para beber água e lavar a cara".
A vista é arrebatadora. O vale estende-se até ao oceano, rasgando as montanhas rochosas que ainda conservam o verde, apesar dos muitos meses que passaram desde as últimas chuvas.
"Começámos por fazer uma coisa pequena e mesmo antes de abrirmos já tínhamos clientes. Tivemos de dar a nossa cama, porque eles subiram e já não quiseram descer", recorda Dominique.
O cenário mudou ligeiramente. Na sombra do alpendre corre uma aragem. Há um cão. Afinal são dois. Chega uma criança. "O que é que se diz?", pergunta a francesa que desistiu de ter carro "porque aqui não vale a pena". "Bom dia", responde. "É o meu filho".
A casa ficou pronta em Setembro de 2006. "Percebemos que havia potencial". O lugar tornou-se conhecido. "Primeiro, tivemos o voto de confiança de alguns operadores turísticos com os quais já trabalhávamos. Depois, começou a ser o boca a boca, que é sempre a melhor publicidade".
Hoje, são nove os quartos, de decoração simples mas cuidada. Não raras vezes a lotação está esgotada.
Dominique e Katelijne mudaram radicalmente o seu dia-a-dia. Chegadas a Santo Antão, a sua principal preocupação foi integrarem-se na comunidade para a qual contribuem e da qual dependem. Instalaram um jardim infantil e recebem diariamente dezasseis crianças da vizinhança.
O seu projecto turístico criou uma dinâmica local que fazem questão de realçar. Além dos empregos directos, dosfuncionários da Casa das Ilhas, oferecem uma oportunidade de obtenção de rendimentos a um conjunto mais alargado de pessoas, dos carregadores de malas - os irmãos de há pouco e a mãe destes, a mais ágil dos três - ao carpinteiro, passando pelas vendedoras de frutas e legumes.
Na equação entra, contudo, alguma perplexidade. "Eu não suporto essa nova mania do país em abrir estradas que não levam a nenhum lado. Eu prefiro andar a pé, mas chegar ao fim do caminho e encontrar alguma coisa, do que andar de carro e chegar ao fim da estrada e não ver lá nada", desabafa Dominique.
"Em Santo Antão ainda está tudo por fazer. É preciso criar as condições para que as pessoas se fixem cá". Para superar esse desafio, o turismo pode desempenhar um papel importante, acreditam as duas sócias e amigas.
"Mas o turismo em Santo Antão tem de ser uma coisa muito calma e bem-feita", alertam em conjunto, apontando para a Ponta do Sol como o exemplo do que "não deve ser feito".
"Ponta do Sol o que é agora? É um cogumelo gigante de prédios".
"Queremos que os turistas deixem cá o dinheiro. Queremos que as pessoas que estão à beira dos caminhos possam trabalhar. Então vamos integrar toda a gente e fazer com que elas tenham alguma coisa a ganhar e por isso não sintam necessidade de sair daqui para outras ilhas ou outros países", sugere Katelijne enquanto acena a um casal de hóspedes que, já refeito dos "15 minutos", se prepara para uma primeira incursão pedestre.
Um escritor
O mais provável é que as crianças italianas não o saibam, ou sequer façam caso disso, mas o autor de muitos dos livros de literatura infanto-juvenil que têm em casa são escritos no Paul. Das mãos de Orazio Minneci saíram obras muito conhecidas no seu país de origem como "Le ventisette valige di Ennesimo Quaranta" ou "Tutti gli spasimanti di Mery Diana del Sol". Poupamo-nos as traduções.
Orazio chegou a Santo Antão em 1995. No seu país natal era bibliotecário e dirigia um centro cultural. A falta de tempo para se dedicar àquilo de mais gosta - a escrita, como se percebe - obrigou-o a mudar de país.
Porquê Cabo Verde? "Foi dedo no mapa", confessa. Sabia pouco do arquipélago, até porque, "naquela altura, este país era praticamente desconhecido".
"Eu não sou um comerciante, não sou restaurador e não tenho nada a ver com a actividade turística", admite. Ainda assim, foi da sua vontade que nasceu a Aldeia Jerome.
Na Vila das Pombas - agora cidade - escondida atrás de outras casas e acessível por uma passagem que passa despercebida a quem não a procurar bem, o refúgio do escritor italiano é, por si, um estímulo à imaginação. Primeiro, o verde denso de muitas árvores e arbustos, apenas rasgado por um caminho de pedra. Trinta metros depois, as casas por onde se distribuem os oito quartos, sem número, mas com o nome de heróis de narrativas imortais.
"Os turistas que recebemos são pessoas que querem conhecer. Gente de um nível cultural e económico ligeiramente mais alto do que aqueles que procuram o turismo de massas. Quem chega, quer integrar-se e saber".
Quererá também consumir os produtos locais. Pode fazê-lo ao pequeno-almoço, com doce, queijo, iogurte e fruta, mas terá dificuldade em encontrar postos de venda, nomeadamente ao longo dos caminhos referenciados nos guias turísticos internacionais e procurados pelos montanhistas.
"Além da cana-de-açúcar, não existe uma produção contínua. O transporte é difícil", refere Orazio. "É mais fácil encontrar produtos de Santo Antão à venda em São Vicente que propriamente aqui na ilha".
Faltará, acredita, alguma estratégia aos agricultores. "Se tivessem outra visão, poderiam montar, ao longo dos trilhos, vendas dos produtos que produzem".
"O sector turístico garantia o mercado para os produtores. E os produtores garantiam o abastecimento do sector turístico".
Algo que já acontece, no entender do presidente da Associação de Municípios de Santo Antão.
"Acho que já há um interface entre agricultura e o turismo. Quando alguém visita a ilha pode encontrar produtos da terra. Há legumes, frutas e pecuária, além da própria pesca", entende Amadeu Cruz.
"Creio que, nesta altura, no Tarrafal de Monte Trigo, Vale do Paul e Vale da Garça, o consumo maioritário é da produção local", acrescenta o também autarca de Porto Novo que não deixa de reconhecer algumas dificuldades e falhas que precisam de ser ultrapassadas.
"Há um défice de informação turística". Nesse sentido, existe um projecto para aproveitar as antigas sentinas e fontanários municipais, entretanto desactivados, reconvertendo os espaços em postos de informação e prestação de serviços.
"Nesses locais será possível, por exemplo, a venda de um café, de uma garrafa de água ou de informação especializada sobre os circuitos. São coisas que podemos fazer com criatividade e imaginação", revela.
O rumo está definido, garante Amadeu Cruz. É o do "turismo de natureza e turismo ecológico ligado às montanhas". Agora, o presidente da Associação de Municípios local quer que as autoridades públicas - do Governo às câmaras municipais - se engajem na divulgação das singularidades da região.
Orazio chegou a Santo Antão em 1995. No seu país natal era bibliotecário e dirigia um centro cultural. A falta de tempo para se dedicar àquilo de mais gosta - a escrita, como se percebe - obrigou-o a mudar de país.
Porquê Cabo Verde? "Foi dedo no mapa", confessa. Sabia pouco do arquipélago, até porque, "naquela altura, este país era praticamente desconhecido".
"Eu não sou um comerciante, não sou restaurador e não tenho nada a ver com a actividade turística", admite. Ainda assim, foi da sua vontade que nasceu a Aldeia Jerome.
Na Vila das Pombas - agora cidade - escondida atrás de outras casas e acessível por uma passagem que passa despercebida a quem não a procurar bem, o refúgio do escritor italiano é, por si, um estímulo à imaginação. Primeiro, o verde denso de muitas árvores e arbustos, apenas rasgado por um caminho de pedra. Trinta metros depois, as casas por onde se distribuem os oito quartos, sem número, mas com o nome de heróis de narrativas imortais.
"Os turistas que recebemos são pessoas que querem conhecer. Gente de um nível cultural e económico ligeiramente mais alto do que aqueles que procuram o turismo de massas. Quem chega, quer integrar-se e saber".
Quererá também consumir os produtos locais. Pode fazê-lo ao pequeno-almoço, com doce, queijo, iogurte e fruta, mas terá dificuldade em encontrar postos de venda, nomeadamente ao longo dos caminhos referenciados nos guias turísticos internacionais e procurados pelos montanhistas.
"Além da cana-de-açúcar, não existe uma produção contínua. O transporte é difícil", refere Orazio. "É mais fácil encontrar produtos de Santo Antão à venda em São Vicente que propriamente aqui na ilha".
Faltará, acredita, alguma estratégia aos agricultores. "Se tivessem outra visão, poderiam montar, ao longo dos trilhos, vendas dos produtos que produzem".
"O sector turístico garantia o mercado para os produtores. E os produtores garantiam o abastecimento do sector turístico".
Algo que já acontece, no entender do presidente da Associação de Municípios de Santo Antão.
"Acho que já há um interface entre agricultura e o turismo. Quando alguém visita a ilha pode encontrar produtos da terra. Há legumes, frutas e pecuária, além da própria pesca", entende Amadeu Cruz.
"Creio que, nesta altura, no Tarrafal de Monte Trigo, Vale do Paul e Vale da Garça, o consumo maioritário é da produção local", acrescenta o também autarca de Porto Novo que não deixa de reconhecer algumas dificuldades e falhas que precisam de ser ultrapassadas.
"Há um défice de informação turística". Nesse sentido, existe um projecto para aproveitar as antigas sentinas e fontanários municipais, entretanto desactivados, reconvertendo os espaços em postos de informação e prestação de serviços.
"Nesses locais será possível, por exemplo, a venda de um café, de uma garrafa de água ou de informação especializada sobre os circuitos. São coisas que podemos fazer com criatividade e imaginação", revela.
O rumo está definido, garante Amadeu Cruz. É o do "turismo de natureza e turismo ecológico ligado às montanhas". Agora, o presidente da Associação de Municípios local quer que as autoridades públicas - do Governo às câmaras municipais - se engajem na divulgação das singularidades da região.
"É necessário que a promoção turística de Cabo Verde, além do turismo de massas da Boa Vista, do Sal e do Maio, aposte no turismo étnico de Santo Antão, mas também de Santiago ou do Fogo. Se o fizermos, estaremos a agregar valor ao país".
País insular ao qual as irmãs Hanne e Angelika prometem voltar. Em Porto Novo, sentadas numa esplanada com vista para o ‘canal', despedem-se do esplendor natural da ilha mais a norte do arquipélago.
Ensaiam algumas palavras em crioulo com a empregada de mesa. A tentativa sai gorada e no mais universal inglês acabam por pedir uma cerveja nacional. "Gostámos muito. Só temos pena que algumas coisas não estejam bem assinaladas. Tivemos algumas dificuldades em descobrir certos caminhos",
Em breve iniciarão a viagem de regresso à casa, jornada que terminará no reencontro com Estugarda, cidade alemã da qual são naturais.
Publicado no Expresso das Ilhas (Cabo Verde) n.º 490 de 20 de Abril de 2011
1 comentário:
Gostei de tua casa.
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