
Em 1995, o que é que esteve na base da fundação do Festival Mindelact?
Várias  coisas. Uma delas foi o facto  de nos termos apercebido de que, depois  do movimento que a cidade tinha  em Agosto por causa do festival Baía das  Gatas, ela morria um pouco em  Setembro, altura em que praticamente não  acontecia nada. Sendo a nossa  área o teatro, achámos que seria  interessante avançar, de forma  consequente, para um evento teatral.
Quem é o “nós” a que te referes?
O  conjunto de pessoas que resolveram  avançar com isto. Actores, actrizes,  gente do teatro.A primeira edição  teve a participação de três grupos,  dois de São Vicente e um de Santo  Antão e ainda foi realizada de forma  um pouco improvisada, digamos  assim. Só depois é que foi fundada a  Associação Mindelact. Em 96,  então, já foi um festival bastante maior,  com 24 dias de duração e  grupos de praticamente todas as ilhas de Cabo  Verde.
Quando é que acontece a internacionalização?
A  internacionalização dá-se em 97,  graças a uma co-produção entre a  Mindelact e Associação Cena Lusófona,  de Portugal, que realizou uma  Estação em Cabo Verde, no âmbito do  festival. Por isso é que costumo  dizer que, para nós, o festival mais  importante foi o de 98, porque foi o  primeiro com carácter  internacional, produzido sem a ajuda directa de  nenhuma instituição.  Nesse ano o desafio era provarmos a nós próprios  que seríamos capazes  de continuar a ter um festival internacional.
O que é que a edição de 2010 apresenta de novo?
Procuramos sempre inovar, através de propostas teatrais que, do ponto de vista estético e da temática, tragam algo de novo às pessoas. O investimento que é feito, tanto por nós, como pelo Estado de Cabo Verde, pelas empresas que nos apoiam, pela Cooperação Internacional dos diversos países ou pelos próprios grupos que participam, é muito grande. Por isso, convém que cada espectáculo, por si, valorize esse investimento e essa valorização pode ser feita pela qualidade, mas também pela novidade em relação ao tipo de texto, à estética da peça ou ao lugar em que é apresentado.
Este  ano, essa componente da inovação é  muito marcante. Seja pelo  espectáculo de abertura do Leo Bassi – que é  um provocador nato – ou  pela apresentação que vai decorrer num vulcão  extinto. Paralelamente,  vamos ter teatro um pouco por todo o lado. No  fundo, todas as propostas  que procuramos trazer, têm algo de novo, para  além da preocupação de  qualidade.
O Mindelact, com as características que tem, só faz sentido em São Vicente?
O Mindelact é o que é por ser nascido aqui e o próprio nome do festival tem o nome da cidade. Não é que não possa haver outros festivais noutras cidades, mas inevitavelmente iriam ter um espírito diferente.
Cada  cidade tem a sua alma própria e o  Mindelact reflecte aquilo que o  Mindelo é. Melhor, acho que o  Mindelact reflecte aquilo que o Mindelo  era no passado e que luta para  ainda ser hoje: uma cidade cultural,  desperta, que se interessa, que  provoca, que reivindica.
O Mindelo deixou de ser assim?
São os novos tempos. As pessoas são cada vez mais individualistas, menos colectivistas. O problema de uma cidade, já não é o teu problema. Só será o teu problema se te entrar pela casa adentro. É como a história da dengue. As pessoas só se preocupam com a dengue quando algum familiar, amigo ou conhecido está em perigo de vida.
O  Mindelo de hoje é uma cidade que não se preocupa, que  não tem o espírito  de criatividade e de reivindicação que tinha há  algum tempo.
Como tinha em 95?
Creio  que sim. Aliás, se não tivesse, o  Mindelact não tinha nascido.
Este ano vão experimentar uma extensão na Praia.
Essa extensão surge um pouco como tudo no Mindelact. Toda a estruturação da programação, com o Palco Principal, o Festival Off, o Teatrolândia e agora o Teatro Periferia, foi surgindo motivada pela necessidade de inovação e de diversificação dos públicos. Para nós, este é um festival que deve ter um cunho social muito importante.
A  cidade da Praia tem tido vários eventos inovadores, seja  no domínio das  artes plásticas ou da música. Achámos que seria a  altura de fazer uma  extensão do Mindelact e fazemo-lo sem qualquer tipo  de complexos. Até  para lutar contra alguns tipos de preconceitos. Isto  não é um Praiact, É  uma extensão do Mindelact na cidade da Praia. São  duas coisas muito  diferentes. E que só foi possível porque houve duas  instituições locais,  o Instituto Camões – Centro Cultural Português e a  Câmara Municipal da  Praia, que aceitaram ser parceiros nesta aventura.
Tendo em conta esses preconceitos, a extensão não pode ser entendida como uma provocação?
Eu já ouvi coisas do género “então já não basta estar tudo lá, ainda vão fazer o festival na Praia?”. É apenas uma extensão. Isso acontece em todo o mundo. Em Portugal, o Festival de Teatro de Almada, que é o maior festival do país, tem espectáculos em Lisboa, no Porto e noutros locais.
O  mais importante desta extensão é dar  oportunidade às pessoas que vivem  na Praia, e muitas delas até são de  São Vicente, de usufruírem dos  espectáculos que nós conseguimos trazer  ao Mindelo.
O Mindelact serviu para formar um público?
Não só o festival, como também os cursos de teatro do Centro Cultural Português. Quando tu dás um curso de iniciação teatral estás a passar um determinado tipo de informação e estás também a formar um espectador especializado. Esse espectador, quando vai ao teatro, leva um primo, um amigo ou a namorada e vai passar a informação para alguém que, por sua vez, começa também a ver o teatro de outra forma.
A formação e o festival têm sido fundamentais e hoje o público do Mindelo é generoso e, sobretudo, muito conhecedor.
Para além de que, quem   vai ao teatro no Mindelo não aceita que o espectáculo co mece com  mais de  cinco minutos de atraso. Só isso, é um avanço considerável.
Cultura  em Cabo Verde
Faltam palcos em Cabo Verde?
O Mindelact é um grande palco e tem sido um factor motivacional. A paixão pela arte não é tudo. Tens de ter condições, tens de ter salas de ensaio, tem de haver lugar para apresentar os espectáculos.
O facto de o Mindelact existir, torna a participação no festival como uma meta. Muitos grupos de teatro ainda existem pelo facto de terem essa perspectiva de participarem no festival.
O que falta em Cabo Verde são outros factores que deveriam existir e não existem. É uma questão de tu teres espaços públicos e esses locais programarem espectáculos com grupos de teatro nacionais.
O  que falta, é tu teres alguém,  responsável por um espaço público, seja um  Auditório Nacional ou um  centro cultural, que chame os grupos de teatro  e lhes diga que quer  apoiar o seu trabalho.
De que forma?
Se  numa cidade existem seis grupos de  teatro, se um ano tem doze meses,  então cada grupo tem dois meses para  apresentar uma peça. Em  contrapartida, a sala ganha a possibilidade de  ter uma programação  própria de teatro. São coisas relativamente simples  de fazer e que não  são feitas.
E as infra-estruturas que existem são suficientes?
A questão que se põe é o que se faz com o pouco que se tem. Eu não acho que a solução seja gastar milhares de contos a fazer um espaço todo novo e multifuncional. Com certeza, seria bom, mas se calhar seria melhor apostarmos naquilo que temos.
Eu  continuo a achar estranho que o  Auditório Nacional, na capital de Cabo  Verde, tenha a sua gestão  privatizada. Um Auditório Nacional tem de ter  uma direcção artística,  um corpo técnico próprio e uma programação  própria, que é uma  programação que o Estado coloca à disposição das  pessoas, como acontece  com os teatros nacionais, em qualquer país do  mundo. Na prática, temos  ali um palco que existe mas não está  disponível.
No Mindelo temos o Éden Park.
O  Éden Park, que está praticamente sem  salvação. Esteve durante os últimos  dois anos a apodrecer à vista de  todos, o que quer dizer que neste  momento já está podre. Se calhar a  solução não era fazer outro teatro.  Era, isso sim, arranjar maneira de  comprar aquele edifício, fazendo jus à  sua história e importância que  ele tem para a cidade, e transformar  aquilo num centro cultural,  palácio da cultura ou teatro municipal.
A cultura é esquecida entre quem decide?
Uma grande entrevista de um grande estadista cabo-verdiano abrange todos os temas, menos um. Há ali um nicho que é sempre esquecido. A cultura cabo-verdiana é um lugar pequenino que nunca é considerado, mas que de facto é o que dá força a todo o resto.
O que eu penso é que há muita coisa por fazer. Fala-se em mudança de paradigma e de economia de cultura e há dez anos que estamos às voltas com os mesmos temas.
Acho que existe uma falta de conhecimento muito grande e existe uma máquina no Estado que emperra um pouco as coisas.
Há  dois anos foi feito um fórum, muito abrangente, com  artistas de todas  as áreas. Saí de lá bastante entusiasmado com os  resultados. Uma das  coisas que foi prometida é que no espaço de seis  meses seria apresentado  um plano estratégico para a cultura. Já  passaram dois anos e esse plano  não apareceu. É preciso agir mais e  mais depressa, sobre novas bases.
Que importância atribuis à condecoração que recebeste há dias?
Acho que foi muito importante essa distinção, por várias razões. Para mim foi importante que o teatro e a dança tivessem sido contemplados neste tipo de condecorações que muitas vezes, por razões óbvias, se lembram apenas da música
Depois,  é um factor de orgulho e  motivação, de satisfação pessoal e colectiva,  que eu devo partilhar com  quem trabalhou comigo ao longo dos últimos  anos, até porque no teatro  ninguém faz nada sozinho.
O que é que faz uma boa política cultural?
Essencialmente é entender alguma coisa de cultura. A primeira coisa a entender é que os artistas cabo-verdianos não são subsidio-dependentes, como algumas pessoas gostam de fazer passar. Ser um músico, encenador ou artista plástico é tão importante como ser advogado. Ter um centro cultural é tão importante como ter uma escola ou um campo de futebol.
Mudar  mentalidades é colocar a cultura num patamar que  corresponda à  importância real que ela tem para o país. É preciso que  as pessoas levem  estas coisas um pouco mais a sério. Enquanto  continuarmos a considerar  que o artista é um coitadinho e que a cultura  é uma coisa anexa, não  vamos a lado nenhum. A cultura é uma coisa  estrutural e estruturante.
Para um homem do palco, como tu, o trabalho artístico em Cabo Verde é diferente daquele que se experimenta noutros países?
Completamente diferente. Há uma  energia, uma emanação, um  lado humano e um compromisso que não  encontras noutro lugar. A mim o que  me assusta é que isso se está a  perder.
Expresso das Ilhas (Cabo Verde) n.º 457 /  foto: Anselmo Fortes
 
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